#2NuCulturaLiteratura

Pagu

por Roberta Ferraz

Colagens de Lucas Simões

Uma ideia relampejou assim: NU/PAGU. O curso d’água dessa edição da Amarello dedicou-se ao tema do nu, às diversas formas de nudez, da mais cartográfica e muda às outras todas, enfeitadas, antigas, fabulares. O desnudar-se do poema jamais se liberta de suas máscaras inoculadas: as coisas estão manchadas de linguagem, embelezadas nelas. Mas de antemão, o NU irmanou-se com PAGU, o que não significa nenhum tipo de compromisso, veja bem.

Pagu, porque esse ano comemora-se 100 anos de seu nascimento, e ela, a “musa trágica da antropofagia”, instalou-se nas nossas rodas alcoólicas e entrou no carnaval da página, que nem sempre é alegre, veja bem. Pagu foi uma mulher excepcional, e pra quem não a conhece, fica a dica de leitura de sua autobiografia errática, Paixão Pagu. Ali ela conta em algumas cartas (ao seu então companheiro no momento, Geraldo Ferraz) todo o fio extremamente coeso de sua vida, que passou pela paixão das experiências numa entrega que beira a exaustão (a nossa): ela bem novinha circulou com os modernistas de 22, como todos sabem, e na efusão de inovar os usos do corpo e da consciência foi se aproximando do comunismo, ao qual se dedicou até chegar ao mais desolado desencanto. Escreveu muito, crônicas, narrativas, poesia. Assinava Pat, Pagu, Gim, Solange Sohl, e outras. Conheceu o Borges, o Prestes, o Freud e, como sempre ressalta a poeta (presente aqui na micro-antologia) Ana Rüsche, a Pagu “andou de bicicleta com o último imperador da China”. A trajetória da nudez, então, não só é eixo de uma vida experimentada, como essa da Pagu, como é a fagulha mais brilhante do que dela nos fica.

Assim, o NU/PAGU se compôs e os poetas/escritores aqui convidados enviaram suas visadas largas, abertas, delicadas sobre esse norte dilacerado. Talvez uma cena arquetípica para dizer a violência da queda em si, em Gabriel Kolyniak. Talvez os andaimes trôpegos do jogo lascivo e deliciosamente carnavalesco da enunciação dos próprios e diversos nomes, em Érica Zíngano. Talvez as lamentações íngremes das escolhas, de um feminino oscilante entre o corpo doado ao sonho social e o corpo maternal, em Roberta Ferraz. Talvez o dilema íntimo-dramático ter um corpo com órgãos geradores em disfunção solitária, em Ana Rüsche.

Talvez formas novas e ainda antigas de tirar o vestido, as calças, a face perante a palavra e entregar esse corpo possível, que é o poema, a quem nele quiser pôr os olhos, o desejo, o ouvido. Ou o que bem entender.

gabriel kolyniak

I
Saltavam pela cerca dois carneiros,
foi da vara do destino que veio o fino
ferimento que, escorrendo, fez, dos dois,
um mancar apenas, dezenas de carneiros

fariam perceber as fraquezas do pastor;
reuniria melhor os novilhos o caçador,
que apearia a tempo de laçar
uma quadra de mugidos, gemidos, balidos,

ociosas refeições do rebanho que pernoita
num pasto roubado ao vizinho distraído,
eis porque é temido o perigoso caçador
remoente, outrora sido – nascido pastor,

na ponta do laço o terror disseminava,
fábula de nação empesteada contava um nauta
que passava em outra margem, a contemplar
a ausência de febre na demência do pastor.

II
Agrilhoado ao ferroal. Arrastaria serras
e roldanas. Amarradas à canela.
Engatadas em argolas, árvore
alta sobre o túnel de água densa.

Caiu nesse vão a atriz de obscura
índole, tateia agora o buraco inquieto
rumo à duplicidade, alardeia um ferimento
que babasse no ferro que nasce puro.

Gabriel Kolyniak, escritor, é natural de Barueri (SP). Além de poemas esparsos fotocopiados e dos publicados nas revistas Polichinello (Belém, 2005, 2006) e Zunái (www.revistazunai.com), publicou o livro de poemas Partilha (São Paulo, PAC; Nankin, 2008).

érica zíngano

situações carnavalescas

I
sábado
de aleluia
desço a rua
de óculos
escuros
acompanhando
o movimento
do bloco
– disfarce –
entre duas
ou mais
possibilidades:
– será que Cristina
volta?, penso
ou será que
fica por lá?
ainda mais
indecisa
entre tantas
outras
máscaras
coloridas
me confundem
Irina,
Sabrina,
Catarina,
até mesmo
Cristina
a quem eu
não saberia
informar
onde eu
guardei meu
próprio nome,
minha história
– passional –
à sete chaves.

II
domingo
depois
da sexta-feira
da paixão
desço a rua
– sem perder
de vista –
a agitação
do bloco
em procissão:
na praça XV
fantasiada de
Gabriela
hoje eu sou
Gabriela,
Gabriela
iêêê
(repete
a multidão)
sempre
Gabriela,
vou ser
sempre
assim
– Gabriela –
sem a
menor
distância
entre
mim
e ela:
eu e ela,
apenas
Gabriela.

III
antes
mas já
na quarta-feira
de cinzas
desço a rua
travestida
de púrpura
purpurina
– ao longe
escuto o
burburinho –
um zum zum
zum que
escorre
de batom
vermelho
e rosa no
cabelo
respondo
a quem me
pergunta
meu nome,
um desconhecido:
– meu nome?
um bibelô!
na vida pagã
eu pago
de Pagu.

Érica Zíngano, http://mileumanotas.wordpress.com/, gosta de observar as passagens no tempo.

roberta ferraz

pagu

I

disseram-me mole e fosca
como um remanso violentado

disseram-me lassa e moça
simples com lacinho nas calçadas

disseram-me a esmo
como se dizer-me
fosse um ato
em que eu sofresse
calmos sacrifícios
a qualquer verão

mas na cama não há estatuto
livro vermelho, cantiga
de sangue que vença o bicho
truculento e sem jeito
o mesmo bicho desclassificado
com vara no meio
que amei ludibriar

II

gim e fé, ruas, vasta madrugada
mão de um homem sem rosto ao meu relento

sem ventre, sem ventrílocos
desato a ser da caminhada

apascento com vísceras e calo
mais gim e outra ordem
vinda do subúrbio

depois desmancho, fico
com o pequeno lustre de uma pensão
sem filhos

dilato, arrumo as fezes dos discípulos
canto uma roda para os órfãos
e quase nunca estou em doçura

tenho um corpo mínimo para o que dou

vestimenta rude, armadura com pulmões
em charcos – todo um esforço sem tamanho
para resgatar dos lixos
a mântica liberta dos queixumes

III

ilesa e possuída
incinerei o que pudesse restar de mágoa
sobre toda constância duvidosa

IV

mulher de galardão a ovular
pechinchas numa tarde garoada
fêmea-tíbia, assassina, numa dolência
que pouco sabe ou titubeia quem a deseja

punhal nos olhos diluído
crista de um véu solar e anfíbio
manhãs de março, praça pública
mormaço, mulher em tempos
de debruo ilícito

a aglutinar a rua dentro desse abandono
transfigurado corpo ausente e ofício
ter ouvidos para o puído dos homens
e só oferecer a outra face
às imagens indefesas

Roberta Ferraz é paulista e escritora, publicou em 2003 o livro Desfiladeiro (Ed. Nativa) e em 2009 o livro lacrimatórios, enócoas (Ed. Oficina Raquel). Em 2010 foi selecionada pelo ProAC da Secretaria da Cultura para prêmio de publicação de livro, livro que elabora atualmente junto de Renata Huber e Erica Zíngano, chamado Fio, Fenda, Falésia.

ana rüsche

US Abdome Total

Desliza estrelas pela minha barriga gelada
e melequenta igual a de uma sapinha mirim,
ele mira as formas indizíveis na tela do outro lado
mão no mouse cheio de gel pelo abdômen da paciente
outra mão e olhos no quadro negro
pontilhado de constelações pulsantes, fórmulas matemáticas
e órgãos, canções de anjos dentro do umbigo e tantas outras coisas incríveis.
Não parecia se maravilhar.
Daí fiquei com vergonha da pergunta, engoli.
Homens com olhos apenas no escuro do céu
nunca sabem o sabor pesado do terror profundo da terra.

a cirurgia foi um after hours, mas estou acostumada a ir dormir tarde
acho que os médicos também, tão animados
fui sim até o centro cirúrgico bem acordada e fiquei acordada, sinto a hack entrando entrando…
ainda ao longe, bem corajosinha. uma conversa sobre qualquer coisa, luzes nos olhos
para que me sinta bem iluminada, bem disposta
de súbito lembro que não fiz depilação e isso me envergonha mortalmente
seria tudo filmado e colocado no youtube da faculdade de medicina, ririam de mim
mas tenho que explicar – foi de urgência a cirurgia, não houve tempo
não há tempo para nada, apenas para ficar ali, suspensa
e, afinal, não tenho namorado, foi uma urgência, sou sozinha

no início, me estacionaram com o carro-maca ao lado de um cara paciente também
podíamos até começar ali um romance,
lembro de ter desejado ao final “boa sorte, moça” e isso acabou já com tudo, que bobo
ele morria de medo, ia retirar uma pedra do rim e não se rendia a dormir
eu logo disse, ah, comigo também pensaram que era cálculo renal, pela dor,
mas depois bem viram que era uma laranja na barriga que eu tinha…
de súbito lembro que removeram o cara paciente com seu carro-maca e com seu medo
e fiquei pensando num poema do zukofsky, sobre uma laranja e o sol e a letra a
estava já chorando desesperada, por estar sozinha e confundindo os poemas, estar tão sozinha,
e a dor, bem isso é com as mulheres