#10FuturoArteArtes Visuais

Portfólio: Theo Craveiro

por Silas Martí

O que eu tinha, de Theo Craveiro

Theo Craveiro tenta esticar a pele da arte. Sua obra usa os vocabulários e matrizes do discurso plástico como receptáculo estranho da vida real. São molduras exatas, rígidas, que se adaptam com certo atrito ao descontrole orgânico, uma colônia de formigas enjaulada em formas construtivas, um gêiser artificial contido num cubo de vidro ou mesmo uma planta de maconha que cresce em plena galeria, dentro de uma estrutura metálica.

Artista que se lançou no circuito levando carrinhos cheios de obras às portas dos museus de São Paulo, Craveiro desde sempre parece delimitar um território e se posicionar à margem dele. No vão livre do Masp e na entrada da Pinacoteca do Estado, armou exposições móveis, tal qual um caixeiro viajante. Eram veículos carregados de sentido, peças de museu vistas do lado de fora, como mercadoria exposta e ainda não digerida pelo sistema oficial. Era como se instaurasse uma arte paralela, um ponto de contato entre a esterilidade dos cubos brancos e a vida que pulsa lá fora, nas ruas da cidade.

Quando decide encerrar uma colônia de formigas numa reprodução das linhas concretas de Waldemar Cordeiro, ou ceder aos bichos as linhas semi-orgânicas de um Metaesquema de Hélio Oiticica, Craveiro parece desafiar o determinismo cerebral do construtivismo brasileiro com uma dimensão orgânica, seres vivos que não se comportam de acordo com cálculos, regras e modelos. Ele aplica a raiz da arte contemporânea no Brasil, espécie de gênese da modernidade tropical, à vida dos insetos, como se ironizasse a falência da utopia modernista, ou aludisse a humanos como baratas tontas dentro de ousadas e austeras construções que não levaram em conta a escala da vida real.

Esse raciocínio se estende, mais afiado, à vitrine de laranjas que construiu tempos depois. Um espelho à primeira vista se revela, na verdade, uma estante de vidro que esconde uma fileira de frutas em decomposição. Começam maduras e vistosas e definham diante do olhar de quem se contempla no espelho. Quem passa diante do vidro tem alguns segundos para ver a própria imagem até que as luzes lá dentro se acendem e revelam as laranjas em putrefação. Numa primeira leitura, seria um manifesto contra a vaidade, mas a forma escolhida para o trabalho não nega o embate constante que preocupa o artista, o contraponto entre uma estética calculada, quase sempre de teor construtivista, e a imprevisibilidade da existência – Craveiro parece então teatralizar a realidade.

Mais explícita, sua planta de maconha floresce dentro de uma estrutura metálica, de linhas ortogonais pretas. Ilegal, o arbusto só pode existir num contexto de exceção, enquanto obra de arte. Craveiro emoldura as folhas com o mais neutro dos suportes, traços negros no espaço que, ao mesmo tempo em que destacam sua natureza distinta do contexto, parecem mergulhar a planta na lógica das obras de arte, objetos sem finalidade, excluídos da narrativa rasteira e mundana da vida. Sua planta, real e em plena exuberância, acaba se tornando então um ser híbrido, desdobrado entre sua presença real e inegável enquanto planta de maconha e também uma simulação removida daquela mesma planta.

Craveiro ataca aqui a ideia de representação central na história da arte. Sua obra é ao mesmo tempo aquilo que aparenta e representa e aquilo que se destaca do espaço da realidade por sua presença no cubo branco e por sua obediência ao traçado ortogonal dos contornos estabelecidos pelo artista. Mais uma vez, como fazia em seus carrinhos de obras de arte, o artista aponta para as margens de um território, exacerbando a fricção entre os espaços como tônica de uma produção instável por natureza, que faz roçar orgânico e construtivo, natural e construído.

Desse atrito, surge uma potência inesperada. Entre as faces de um cubo de vidro, Craveiro instalou um jato de água que bombeia o líquido com toda a força contra as paredes transparentes. É um equilíbrio frágil, quase a ponto de explodir, que se deixa ver através do vidro, ou melhor, aquele momento em que a arte é flagrada no limite entre forma pura e pulsão de vida irrefreável.