“Além da extraordinária perspicácia, a grande amplitude de visão desse homem e o fato de que ele mesmo estava de tal maneira no controle de um grande movimento se faziam sentir, especialmente em público. Presenciei esse aspecto de Freud nas reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena, nas quais esse homem aparentava ser um gigante em meio a pigmeus.”
Ler isso, e tendo ouvido o nome “Freud” pipocar aqui e ali nos mais variados contextos, faz surgir a pergunta: como devia ser a experiência dos pacientes do criador da psicanálise? Abram Kardiner, psiquiatra e psicanalista americano, mata um pouco dessa curiosidade no livro Minha Análise com Freud, lançado recentemente pela editora Quina.
É verdade que, no caso de Kardiner, ele teve a oportunidade por ser um prodígio no mundo da psicologia e sua análise, portanto, serviria mais como um testemunho de como Freud aplicava sua psicanálise na prática e menos como uma terapia contínua. Mas, ainda assim, foi uma jornada que gerou um contato próximo com uma das pessoas mais influentes da história recente da humanidade.
“Poucas pessoas tiveram o privilégio de ser analisadas pelo próprio Freud. (…) Se eu fosse mais jovem, hesitaria em revelar os fatos biográficos necessários para essa empreitada. Em minha idade, no entanto, o que importa não é tanto dar uma contribuição à Freudiana, sobre a qual já existe material abundante. Minha motivação é um pouco diferente – revelar sua técnica, tanto quanto possível, em um caso específico.”
Para se ter uma ideia de quem foi Abram Kardiner e entender o porquê dele ter sido selecionado para uma experiência como essa, basta citar alguns de seus feitos posteriores: foi responsável por promover estudos revolucionários sobre as interseções entre a psicanálise e a antropologia, além de ter feito contribuições seminais para a compreensão dos efeitos psicológicos do trauma e do estresse social, ajudando a estabelecer os fundamentos para o estudo moderno do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Embora nem sempre tão reconhecido, ajudou a expandir a psicanálise para além das fronteiras da psicoterapia individual.
Minha Análise com Freud, lançado fora do Brasil originalmente nos anos 1970, tem como força os trechos pessoais e reveladores do próprio autor, que compartilha suas experiências durante a análise entre 1921 e 1922, assim como suas reflexões sobre Freud enquanto analista e pessoa. Como o autor escreve no prefácio, a obra se caracteriza não como uma especulação sobre a teoria freudiana, mas por “revelar sua técnica, tanto quanto possível, em um caso específico.” Não à toa, um dos aspectos mais interessantes do livro é a análise crítica que Kardiner faz da própria análise que o dr. Freud está conduzindo. Ele discute sua técnica, apontando tanto suas virtudes quanto suas limitações.
Revela, por exemplo, como Freud utilizava o complexo de Édipo como estrutura central da análise, mas também como se desviava de sua teoria da libido em determinados momentos. “Ele praticamente não falou nada sobre o erotismo anal, exceto de passagem (…). Em outras palavras, a análise foi iniciada com o complexo de Édipo, a derivação da constelação de dependência, com sua homossexualidade inconsciente, como uma das resoluções dos fracassos para resolver o complexo de Édipo satisfatoriamente, em cujo estado Freud me encontrou.”
Porém, ainda que cutuque uma ou outra atitude do psicanalista, Kardiner reconhece o “gigante entre pigmeus” quando escreve sobre a abordagem terapêutica de Freud, destacando sua habilidade única na interpretação dos sonhos e nas associações livres. Diferente dos outros, ele não lançava mão dos discursos inacessíveis, a genialidade de Freud também se manifestava ao fazer interpretações em linguagem comum, sem se prender excessivamente a formulações teóricas: “O que tornou Freud um analista extraordinário foi o fato de, pelo menos naquela época, ele nunca utilizar formulações teóricas, fazendo suas interpretações em linguagem comum.”
Ao longo do texto, Kardiner compartilha insights valiosos não apenas sobre Freud, mas também sobre o contexto histórico e cultural da Viena do início do século XX. Ele destaca a influência da psicanálise na sociedade da época e levanta a bola para falar das tensões e rivalidades entre os principais nomes do movimento psicanalítico, como Alfred Adler. Chega a ser curioso imaginar essas pessoas carregando qualquer tipo de rivalidade, mas acaba sendo um deleite. “Na verdade, não havia muitos psicanalistas – talvez uns quinze ou vinte –, mas todos eles tinham de passar por Freud, de modo que ele tinha um grande controle tanto sobre os aspectos econômicos quanto sobre o progresso do grupo. Não se podia deixar de reconhecer que essa influência era perniciosa, uma vez que também criava um bocado de rivalidade, brigas internas e manobras entre seus discípulos, levando a que se bajulasse aquele que era o grande provedor.”
Com sua narrativa envolvente e análises perspicazes, Abram Kardiner nos leva pelas profundezas da mente humana, principalmente na sua. No meio disso, nos convida a refletir sobre o legado duradouro de Sigmund Freud, o que talvez seja o que a obra tenha de mais instigante.
Hoje em dia, a psicanálise continua a ser uma influência significativa no campo da psicologia e da psicoterapia, embora tenha enfrentado críticas e desafios ao longo dos anos. Muitos terapeutas ainda utilizam conceitos fundamentais da psicanálise, como o inconsciente, a transferência e a interpretação dos processos mentais, como base para sua prática clínica. A psicóloga Karin Silva1 acredita “ser importante considerar que Freud rompeu com paradigmas científicos muito fortes da sociedade da qual fazia parte e daquele cenário histórico”, sendo inegável “que a teoria psicanalítica freudiana trouxe contribuições singulares para o campo da psicologia em geral ao propor um método que valorizasse mais a singularidade e a complexidade dos processos subjetivos.”
No entanto, a abordagem psicanalítica evoluiu e se diversificou, incorporando ideias de outras escolas de pensamento, como a psicologia humanista, a terapia cognitivo-comportamental e a psicologia positiva. Essa integração de diferentes perspectivas permite uma abordagem mais holística e flexível, adaptada às necessidades individuais dos pacientes.
Dentro da comunidade científica e acadêmica, a psicanálise tem sido objeto de críticas e debates, especialmente em relação à sua eficácia em comparação com abordagens mais orientadas para evidências. Apesar disso, muitos defensores da psicanálise argumentam que sua ênfase na compreensão profunda dos processos mentais e emocionais, bem como na relação terapêutica, oferece benefícios únicos que podem não ser captados por métodos exatos. Na visão de Karin, “a psicanálise é injustiçada no campo das ciências quando dizem que ela não é científica devido ao fato dela não reproduzir um modelo de ciência parecido com o das ciências naturais e exatas.”
Ao refletir sobre o futuro da psicanálise, isso nos anos 1970, o próprio Abram Kardiner escreve: “Devemos aprender a diagnosticar as doenças do nosso tempo e aquilo que está acontecendo na mente humana, numa cultura cujos padrões básicos estão se alterando a uma velocidade estrondosa.”
E Karin endossa sua opinião, voltando os olhos, inclusive, para o Brasil: “O fato da psicanálise ter sido criada no período Moderno em uma sociedade europeia voltada para as elites, pouco foi considerado na disseminação desta abordagem no Brasil. Por essa razão, por muito tempo e muitas vezes ainda na atualidade, a psicanálise pode apresentar uma leitura reducionista e individualista da subjetividade. Isso porque a realidade da maior parte da população brasileira, que é negra e/ou pertencente a classes populares, vivencia dilemas e problemáticas muito diferentes do público considerado por Freud na elaboração das suas teorias. Não é à toa que, por muito tempo com o aval da psicanálise freudiana, a psicologia no Brasil foi reduzida à psicologia clínica e acessada somente pelo público elitizado, os únicos com condição financeira e tempo para falar sobre suas aflições.”
O Sigmund Freud pintado por Kardiner de fato temia pelo futuro da psicanálise. Ele tinha medo de que ela fosse ficar restringida — daí a importância das adaptações temporais, culturais e socioeconômicas. Portanto, para além de sua leitura agradável e acessível, Minha análise com Freud serve como um lembrete de que, mesmo em uma era de avanços tecnológicos e mudanças sociais rápidas, as questões fundamentais da psique humana permanecem profundamente arraigadas e requerem uma exploração contínua e sensível para alcançar uma compreensão mais profunda e um bem-estar emocional duradouro.
Com esse livro, publicado no Brasil pela primeira vez, conseguimos vislumbrar um pouco da experiência de ser analisado por um fundador do seu campo de conhecimento — e, a partir daí, vislumbramos também a ressignificação sempre necessária de seu corpo teórico.
Mesmo presentemente, a psicanálise carrega uma responsabilidade para com as pessoas, sendo a oportunidade para um renascimento depois que todos os impedimentos tivessem sido removidos. Adaptando-se a novos divãs e a novas realidades, ela pode “fazer o bem”, da forma como Freud e Kardiner acreditavam que ela era capaz.
1Karin Silva, mestre e doutoranda em psicologia, é psicóloga clínica e social ([email protected] / @_profpsi)