Para o arquiteto, a falta importa. A inexistência de matéria, mais propriamente entendida como vazio, pode ser melhor compreendida a partir das considerações adiante expostas.

A construção do vazio é um dos pontos principais que o arquiteto deve dominar. Isso porque, em primeiro lugar, habitamos o vazio. Nossa experiência com o espaço, seja ela práticaou subjetiva, acontece nele. Assim como um escultor, a partir de um bloco monolítico, esculpe a figura pretendida através da remoção da matéria, o arquiteto se depara com um exercício semelhante em diversas escalas e contextos.

 A expressão “vazios urbanos”, por sua vez, é usualmente empregada pelos urbanistas como espaços negligenciados pela cidade, áreas sem uso, lotes vazios, obstruções físicas que impedem, parcial ou totalmente, a integração urbana. Esses comprometimentos da fluência dos espaços dificultam o acesso e a relação de áreas residenciais com setores comerciais e de serviços, e, o que é mais grave, em alguns casos, criam barreiras e acentuam desigualdades sociais.

Panteão, em Roma.

Quero, porém, ressaltar os necessários — e desejados — vazios que melhoram a qualidade de vida dos habitantes. Por exemplo, um projeto de urbanismo pode ser desenvolvido a partir do reconhecimento dos vazios, como no caso de uma praça, de calçadas mais largas, de um recuo de edificações ou mesmo do recuo das construções em relação ao passeio público, e assim por diante. O respiro, a pausa, o maior espaço e a permeabilidade na circulação dos pedestres se torna fundamental no contexto de nossas cidades mais densas. Ao analisar Manhattan, em lugar de inúmeras praças espalhadas pela cidade, foi idealizado um grande vazio central, o Central Park. Em contrapartida, Londres foi desenhada pontuando jardins menores e fragmentados pela malha urbana, alguns inclusive fechados para uso exclusivo dos moradores das casas que os circundam. Os grandes parques de Londres eram, em sua maioria, campos de caça que posteriormente se transformaram em parques. Evidentemente, as estratégias adotadas nessas cidades para os vazios planejados geram impacto nas dinâmicas sociais.

As cidades brasileiras, por sua vez, são colchas de retalhos de estratégias inspiradas nas principais correntes urbanísticas, a depender da época em que foram implantadas — na maioria das vezes, apenas em áreas privilegiadas da cidade. Nossa carência de vazios planejados é evidente, e os poucos existentes resultam de boas intenções pontuais e muito empenho, como o Parque Augusta e a abertura do Minhocão nos finais de semana,no caso da cidade de São Paulo.


Santa Paula Iate Clube, projetado pelo arquiteto João Batista Vilanova Artigas na década de 1960.

Os vazios planejados são fundamentais para que a vida urbana aconteça em sua plenitude e têm impacto direto na qualidade de vida e na saúde mental de seus habitantes. As cidades precisam ser densas(que não haja equívoco quanto a isso), as pessoas devem morar onde desejam e preferencialmente próximas de onde trabalham. As demandas precisam ser atendidas, mas, tão importante quanto a alta densidade das áreas urbanas, deve haver o contraponto, há que se dimensionar e locar adequadamente os vazios e requalificaraqueles que nos separam.

O vazio também merece protagonismo na escala das construções, seja numa casa, numa capela ou num museu. A proporção do vazio no espaço construído e sua dimensão em relação ao pé direito projetado, somadas as aberturas para a entrada de luz natural, têm influência direta na psique humana, evocando desde o acolhimento e a serenidade até a grandiosidade dos monumentos.

A magnitude do Panteão, em Roma, impacta não pela altura da construção, mas sim pela dimensão de seu vazio interno, coroado pela abertura de luz no topo.

Em um de seus últimos projetos, a reforma da Bolsa do Comércio de Paris, o arquiteto japonês Tadao Ando, que possui grande sensibilidade para o vazio, através de intervenção precisa de empenas de concreto, organizou a circulação em torno do vazio central e reforçou seu protagonismo.

Bolsa do Comércio de Paris, de Tadao Ando.

Vale aqui referir David Byrne, vocalista do Talking Heads, que em uma palestra muito interessante, correlaciona o desenvolvimento de alguns tipos de música ao espaço onde foram criadas, essencialmente a melhor propagação da música no vazio em que surgiram. Cantos gregorianos em catedrais góticas, jazz em ambientes pequenos, rock e punk nos porões.


Planta e corte de uma casa projetada por Felipe Hsu, no interior de São Paulo, em torno de um vazio central.

Nas casas brasileiras, em função das dimensões recorrentes dos lotes de meio de quadra, o vazio em forma de pátio interno, central ou lateral, recurso utilizado desde a Antiguidade Clássica, é ferramenta que permite a entrada de luz, confere permeabilidade visual à construção e agrega vantagens térmicas na implantação do projeto.


Casa em Santa Teresa, projetada pelo arquiteto Angelo Bucci. Foto: Nelson Kon

A ausência de materialidade em determinados pontos da construção é recurso que traz leveza ao objeto edificado. O que em princípio seria pesado e volumoso, pela ausência de matéria no encontro das formas, torna-se delicado e singelo.

O arquiteto brasileiro Angelo Bucci, um dos mestres em transformar o peso do concreto em construções leves que parecem apenas pousar no solo, utiliza empenas que não se tocam — vazios internos e externos que dialogam para criar uma construção rica, essencialmente através dos vazios e da ausência de encontros.

Nos dias atuais, marcados pela velocidade do mundo digital, pelo excesso de informação e pelas rotinas apressadas, o vazio, enquanto elemento chave do projeto, tem essa qualidade imaterial, muito própria e intrínseca, que traz bem-estar, proporciona oportunidade de contemplação e leveza e traz serenidade e respiro para aqueles que têm o privilégio de habitar, trabalhar e circular nos espaços assim projetados.