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Transe

por Bruno Pesca

Bamiyan é um vale verde vivo cercado por montanhas sem fim, cujos cumes mais altos e esbranquiçados pela neve – mesmo no verão – são plano de fundo de um visual cinematográfico. Dois budas gigantes e monumentais, esculpidos ao estilo grego há quinze séculos, decoram o enorme paredão montanhoso de frente ao pequeno vilarejo e avisam que há muito mais história ali do que se poderia imaginar. Ficava claro o nosso privilégio. Foi somente no carro, durante a viagem de volta, que o êxtase passou e a realidade voltou: pegamos o caminho errado, e por instantes estávamos perdidos sozinhos em meio ao Afeganistão em guerra. Eu estava com medo.

Durante as décadas de 1960 e 70, aquela beleza toda fazia a cabeça dos hippies. A chamada hippie trail levava os jovens de imaginação por estradas desde a Europa até a Índia ou Nepal com um dólar por dia. Um dos ápices da viagem era bem ali. Em 1979 veio a invasão e guerra soviética, nos anos 1990 o Talibã, e na última década os falcões norte-americanos. Hoje não há muitos curiosos passeando na região, não mais. Como quatro cariocas foram parar em uma área tão remota, há duzentos quilômetros da capital de um país em guerra há trinta anos, é uma história longa, porém muito simples.

Uma reflexão desperta sentimentos – entre eles o medo – que podem te levar a lugares inalcançáveis, onde as pessoas dizem que você não pode chegar. O medo, no caso, seria o de ver a vida passar, de não usufruir de suas capacidades e de tomar decisões de vida por limites inexistentes desenhados por outros. Seria um medo de acreditar em si mesmo, que é cada vez mais comum. Em tratamentos de choque, esse medo de não viver empurra alguns ao desejo de sentir a vida na pele, e o perigo nasce quando isso exige situações que nos levem até, no limite, a perder a vida. Mas essa não é minha onda, e todas essas viagens, apesar do rótulo, são sempre lúcidas. Ou pelo menos acreditava nisso até aquele momento na estrada.

Fazer diariamente algo que te assuste um pouco pode ser uma receita de vida saudável. O segredo talvez seja a dosagem, embora não se possa esquecer que perigo é algo muito relativo. Duas pessoas igualmente sensatas podem ter disposições diferentes para a mesma situação de perigo. Um piloto profissional acelera tranquilamente a 300 km/h num carro de corrida, e sua análise de risco é diferente da de um gaiato. Mas em nosso caso ali, perdidos no Afeganistão, a análise de risco era diferente apenas porque as informações são diferentes. Operamos em cima do imaginário popular sobre certas realidades, e vamos de maneira “inconsequente” atrás da “verdade”. Mas essa é outra ideia relativa. E inconsequente, para nós quatro, é quem dá as costas para as mazelas do mundo que habita.

Nesse mundo aparece, às vezes, muita gente que não vive onde se vê quase todos os dias o risco real de se estar vivo, como em zonas de guerra; vive com o medo de viver como gostaria, e poderia. Porém, tecnicamente, diria o astrônomo, não é em nosso planeta onde o medo orbita em volta, e sim em Marte. Fobos é uma das duas luas daquele planeta. A outra é Deimos, que em grego quer dizer terror, assim como Fobos quer dizer medo. Dos gregos também vinham estilo e habilidade arquitetônicos exibidos nos Budas de Bamiyan, que sobreviveram a Genghis Khan, a séculos de islamismo, sol e chuva, mas não à boçalidade do Talibã, em 2003.

Foi pensando que não pouparam nem a história do próprio povo que nos ocorreu que seria o fim da linha se cruzássemos com o Talibã na estrada. Em Cabul, as instruções haviam sido claras: “sigam por esta estrada mais lenta, pois sabemos que os vilarejos em suas margens são seguros, e sabemos que o exército a controla, mas nas outras pode ser roleta-russa”, disse o dono do carro alugado. Felizmente, nosso motorista achou o caminho de volta para a estrada certa, e uma vez de volta voltamos a não pensar no medo, agora novamente gerenciado. A próxima parada seria, naturalmente, em mais um lugar cinematográfico onde se sente o valor de se estar vivo.

Por mais paradisíaco que possa ser Marte para algum ser, parece apropriado o nome de seus astros. Não importa o quão belo um mundo pode ser, mas medo e terror estarão sempre à volta.