#4ColonialismoHistória

A ópera e o boi: Fitzgerald, Fitzcarraldo e Lindolfo Monteverde

por Fernando Falcon

Em 1875, Paris inaugurou sua ópera. O edifício projetado por Charles Garnier coroou o processo de renovação urbana iniciado no século XVIII, por Luis XV, e intensificado e concluído pelo barão de Haussman, em meados do XIX. Mais do que o principal local de encontro da burguesia parisiense, l’Opéra simbolizou a transformação da cidade industrial na cidade cultural, pela qual as metrópoles ocidentais passariam nos cem anos seguintes. Vinte séculos de história tinham gerado — para aquele contexto — o que de melhor a civilização ocidental produzira: o estado laico (com o fim da monarquia absolutista e da influência católica), a democracia burguesa, a arquitetura, as artes plásticas, a literatura, a música e a tecnologia (a cidade luz, com seus sistemas de água e esgoto, trens e metrô). Pode-se imaginar que um irlandês empreendedor e viajante como Brian Sweeney Fitzgerald tenha flanado por suas ruas e assistido a um espetáculo na ópera. Se já não o era, torna-se um amante dessa arte e idolatra os seus deuses — os cantores e cantoras — primeiros ídolos globais da história.

Algumas décadas mais tarde, a demanda por borracha no mundo cresceu vertiginosamente, para abastecer a recém nascida indústria automobilística. A única fonte conhecida para produção desse material era a seiva de uma árvore amazônica, a seringueira. A súbita riqueza de algumas pequenas cidades dessa região transformaram-nas em grandes pólos de geração de trabalho e oportunidades. Belém e Manaus, no Brasil, e Iquitos, no Peru, produziram uma elite que emulava os costumes europeus. A navegação a vapor tornava essas cidades mais próximas da Europa do que das cidades do sul e seus filhos estudavam em Paris e Londres. Os barões da borracha de Manaus e Belém patrocinaram a construção de teatros de ópera inspirados em Paris como ato civilizatório das cidade amazônicas. Nosso personagem, Fitzgerald, denominado a partir de agora Fitzcarraldo, foi atrás de riquezas em Iquitos. Lindolfo Monteverde, o outro protagonista, ainda não nascera, mas seus pais, lavradores miseráveis do interior do Maranhão, fugindo de uma sequência de secas, acabaram em Parintins — região extratora de látex ligada à Manaus —, misturando-se à massa de migrantes miseráveis e índios escravizados. Carregavam, além de seus poucos pertences, a tradição do bumba meu boi.

Há registros sobre a festa do bumba meu boi no Brasil desde o século XVII. Suas raízes podem ser traçadas até às festas pagãs pré-cristãs, posteriormente incorporadas à tradição católica, e a algumas tradições indígenas e africanas sincretizadas de diversas maneiras no território brasileiro. Maranhão e Piauí são os estados onde a brincadeira mais se agregou à tradição local. A festa constitui uma espécie de ópera popular. Basicamente, a história se desenvolve em torno de um rico fazendeiro que tem um boi muito bonito. Esse boi, que inclusive sabe dançar, é roubado por Pai Francisco (ou Mateus), trabalhador (ou escravo) da fazenda, para satisfazer a sua mulher Mãe Catirina (uma mulher negra, em geral muito desinibida), que está grávida (ou finge estar) e sente desejo de comer a língua do boi. Ele mata o boi. O fazendeiro percebe o sumiço de seu animal, descobre o autor do roubo e manda que Pai Francisco o traga de volta. Pajés são chamados para salvá-lo dessa enrascada e quando, depois de muitas tentativas, o boi ressuscita urrando, todos começam a cantar. Pai Chico e Mãe Catirina são perdoados.

Fitzcarraldo, interpretado por Klaus Kinski, é o personagem do filme homônimo de Werner Herzog. Retrata esse irlandês, que no fim do século XIX, já instalado em Iquitos, busca formas de gerar riqueza para construir uma ópera na cidade e trazer Enrico Caruso para ali se apresentar. Sua primeira tentativa é uma ferrovia, a trans-andina, que conectaria a região Amazônica ao Pacífico. Abandona a empreitada quando se mostra inviável sua construção e começa, então, a produzir gelo. Essa nova tentativa também fracassa. Don Aquilino, um barão da borracha, mostra a Fitzcarraldo a única região de floresta ainda não explorada e explica o porquê: o rio que acessa essa área é cheio de corredeiras e cachoeiras. Pelo mapa da área ele percebe que um outro rio, esse navegável, numa de suas curvas, se aproxima muito daquele primeiro numa área depois das corredeiras, separados apenas por um morro. Ou seja, se conseguisse atravessar um barco de um rio para o outro, dominaria essa rota e poderia se tornar outro barão da borracha. Usando seus contatos e influência, consegue a concessão dessa região e com um empréstimo dado por sua amante (Molly), dona do bordel, compra um vapor — o qual nomeia Molly Aida — e monta uma tripulação. A viagem transcorre com alguns percalços até o ponto da travessia. Ele consegue envolver os nativos no seu plano. A floresta na área é toda derrubada. Através de um sistema de cordas, roldanas, força de muitos braços e uso do próprio motor a vapor, sem contar todas as situações dramáticas, mortes e ferimento resultantes dessa empreitada épica, movem esse navio de 340 toneladas de um rio para o outro, subindo e descendo inclinações de até 40º. Comemorando o feito, embriagam-se. Praticamente desmaiados, não percebem que o barco é arrastado pela correnteza do rio. Quando acordam, já estão irremediavelmente reféns das forças das águas. O barco é bastante comprometido, mas Fitzcarraldo sobrevive e retorna à Iquitos. Todo o esforço foi em vão. Ele perde o barco e a concessão das terras. Don Aquilino, num gesto de consolação, patrocina a apresentação de uma orquestra dentro de um barco no rio para deleite de Fitzcarraldo. Fim.

Lindolfo Monteverde nasce em Parintins e desde cedo brinca de boi nas festas de junho. Ainda jovem, fica gravemente doente e faz uma promessa a São João Batista: se curado, celebraria o santo todo junho, pelo resto da vida, com uma festa do boi. Cumprindo com sua palavra, cria, em 1913, o boi Garantido e passa a festejá-lo anualmente. Em 1925, é fundado o boi Caprichoso, a rivalidade entre os dois se inicia e a partir de 1965 as celebrações ganham o formato de festival folclórico que mantém até hoje.

Fitzcarraldo nunca existiu. Ele foi inspirado pelo barão do café Carlos Fermín Fitzcarrald. Filho de pai norte-americano e mãe peruana, era uma figura violenta, que explorava trabalho escravo dos índios da região e que realmente transportou um barco através de uma montanha. O barco, muito menor do que o do filme, foi desmontado antes de ser carregado. Ele morreu num acidente com seu barco, aos 35 anos.

Klaus Kinski não foi a primeira opção de Herzog para o papel. Ele substituiu Jason Robards que teve que abandonar as filmagens ao ficar doente. Herzog teve que refilmar com Kinski as cenas já filmadas, quase 40% do total. Esse era seu quarto filme com o diretor e os dois haviam desenvolvido uma relação de paixão e ódio. A instabilidade do ator quase comprometeu a realização do filme, sendo ameaçado de morte por Herzog. Sua interpretação apaixonada e enlouquecida é um dos pontos altos de Fitzcarraldo e talvez tenha sido a última vez em que atingiu tamanha intensidade. Klaus Kinski morreu de ataque cardíaco, aos 65 anos, na Califórnia.

Werner Herzog já produzira um filme na amazônia peruana — Aguirre: a cólera dos deuses (1972) — com Kinski no papel principal. Dez anos depois iniciou a produção de Fitzcarraldo. Sua insistência em filmar somente em locações fez a Fox desistir da produção, que foi assumida por ele e seu irmão. A grande questão das filmagens era as cenas da travessia do morro e do barco nas corredeiras. Com o envolvimento dos nativos e locais, a ação foi executada conforme descrita anteriormente, sem uso de qualquer efeito especial ou ajuda mecânica. Vários participantes ficaram seriamente feridos e o próprio Herzog relata que um local pediu pra ter a perna amputada após ser picado por uma cobra. A cena das corredeiras foi filmada a partir do próprio barco, ferindo gravemente três pessoas da equipe. É comum se dizer que a identificação entre diretor e personagem na produção desse filme beira a insanidade. O epíteto de Fitzcarraldo, Conquistador do Inútil, aplicar-se-ia também a Werner Herzog.

Hoje o diretor vive e produz seus filmes em Los Angeles.

Iquitos não tem uma ópera e sua principal atração turística são as locações do filme de Werner Herzog.

Manaus conseguiu, depois de 100 anos da inauguração do teatro, criar um importante festival de ópera, mas assim como Belém, luta pra definir suas vocação como cidade e conectar-se ao restante do país.

Parintins construiu, em 1988, o bumbódromo, a arena do boi, celebrado todo ano por milhares de pessoas, sincretizando índio e branco, na disputa do vermelho e azul, garantido e caprichoso, em memória da promessa de Lindolfo Monteverde para São João Batista.