Perplexos diante de um tempo de incertezas e mudanças, movimentamo-nos. Os lugares parecem cheios e nem por isso sentimos conforto ou segurança.
Nosso mundo ora parece ameaçador, ora divertido. Enquanto cada um cumpre sua trajetória, aproximam-se nossos personagens.
Uma mulher, feita de fios e camadas: Lânguida era seu nome.
Bela, vazia, de um andar macio que quase não pisava o chão.
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Peso: uma criatura de massa, de cérebro enorme e seis patas, e com uma mala ocupada por montes de bagagens; sempre prevenido e tentando antever suas necessidades. Não tinha amigos, pois não os julgava necessários.
Além do óbvio, carregava amuletos porque acreditava numa sorte que nunca tivera, mas para a qual, se lhe aparecesse um dia, queria estar preparado.
E pensava em suicídio…
Aqui interrompemos nossa narrativa. Quem quiser saber mais terá de aguardar a publicação do livro e então descobrir, por exemplo, como nossos hoeróis encontram tal lenda viva.
Sísifo
Na Grécia Antiga, mais precisamente em Corinto, viveu um homem que – ao enganar os deuses e, pois, a própria morte – se tornaria um mito. Seu nome era Sísifo e diziam ser o mais esperto de todos os homens. Sua astúcia lhe rendeu uma fortuna como comerciante, até se tornar rei da bonita e próspera cidade de Corinto. Ali se produzia a mais bela cerâmica do mundo antigo, região sobre a qual os navios que vinham da península Itálica, pelo mar Adriático, eram atravessados de modo a chegar ao Egeu e continuar viagem ao Oriente.
E foi ali que Sísifo viveu, reinou e fez sua fortuna. Certo dia, andava por suas terras quando viu um pássaro carregando a linda Égina. A moça estava desaparecida, todos sabiam disso, e seu pai a procurava. Sísifo reconheceu, no disfarce do pássaro, Zeus – o chefe de todos os deuses do Olimpo. Assim, foi ao pai da moça raptada e trocou esse segredo por uma fonte de água para seu reino. Zeus ficou furioso! Como um simples mortal poderia ter a audácia de denunciá-lo?
Imediatamente, mandou Sísifo ao Hades – o mundo dos mortos. Mas ele, esperto, não se deixou vencer. Valendo-se de um truque, acorrentou Tânato, a própria morte, e voltou para o mundo dos vivos, resultando também em que, com a morte imobilizada, ninguém mais morresse nas batalhas. Irado, o sangrento deus da guerra, Ares, foi saber de Hades por que aquilo ocorria.
Descobriram então o truque de Sísifo e libertaram Tânato. O fugitivo, portanto, teria de retornar ao mundo inferior – e sua vida estaria acabada.
Sua esperteza, porém, não se esgotava e, antes de regressar, instruiu sua esposa a jogar seu corpo nu em praça pública, não lhe dedicando rito sagrado algum. A mulher, obediente, assim o fez.
Quando o astuto Sísifo novamente chegou aos mortos, convenceu o próprio Hades a que lhe deixasse retornar, uma vez que não merecera o cerimonial necessário.
Os rituais eram importantes. Se Sísifo não os recebesse, nenhum mortal os respeitaria mais – o que desmoralizaria o próprio senhor da morte, Hades. Sísifo teve de regressar aos vivos para reclamar seus rituais – apenas após os quais poderia morrer.
Mas, esperto, já traçara seu plano – e nele cabia tudo, menos o mundo dos mortos!
Assim foi: viveu até sua velhice, ali, perto de sua esposa, vendo seus descendentes, uma geração após outra, e só quando estava bem velhinho entregou-se ao reino de Hades.
A esperteza de Sísifo não passaria despercebida, no entanto, Zeus mandou-lhe um castigo terrível: para sempre empurraria uma pedra muito pesada morro acima, só para que, quando chegasse ao cume, a visse rolar para baixo. Essa foi a pena que Sísifo recebeu por enganar Zeus, querer driblar a própria morte e assim se igualar aos imortais do Olimpo.
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O que pode significar o Mito de Sísifo? A busca – em vão – do homem pelo conhecimento? A dedicação para construir coisas e obras que perduram ou que serão destruídas? Seria o sol, que se levanta todos os dias? Uma metáfora para o empenho dos políticos em sua constante luta para chegar ao poder – uma jornada vazia e sem sentido? O esforço absurdo que fazemos – no curso de uma vida comum, em que acordamos diariamente, trabalhamos, empreendemos outras tarefas, comprometemo-nos com pessoas – mesmo sabendo que o fim será a morte?
Podemos também imaginar Sísifo como um homem conformado com seu destino?
Caros Peso e Lânguida,
Desafiei medos como um gigante, encarei a existência como algo possível e amorável. Usufruí de minha vida de jovem com toda força e vitalidade. Ah! Como era bom sentir a força de meus braços bronzeados, e como me diverti com minhas ideias e negociações, as quais me trouxeram tanto poder e dinheiro! Como era divertida a minha vida, cheia de emoções, de prazeres, de sofrimentos e de conquistas!
Tive tudo que um homem pode desejar: um casamento feliz, o amor das mulheres, prestígio político! Chorei de emoção, chorei de dor, chorei pela vitória e pela derrota. Nunca me acovardei nem temi ser roubado ou castigado. E ainda deixei no mundo descendentes, um deles ninguém menos que o próprio Odysseus! Reconheço que isso me levou à híbris e, portanto, a subestimar a força dos Olímpicos. Mas, como saber disso quando se é jovem e o mundo parece se desdobrar a seus pés e a suas ideias?
Ah, quanto se divertiu esse velho Sísifo que lhes fala agora! E como me divertia quando via meu nome falado em toda Ática, na Europa Central e até entre os bárbaros.
Meu nome saiu da boca de gente comum tantas vezes até entrar para a história, para a literatura, para a filosofia. Fui ao mundo para ser destemido como Aquiles, para celebrar cada gota de vida como Dioniso, cada grão de terra como Deméter. Meu destino se tornou uma metáfora importante para a humanidade. Afinal, o que significam a vida, o esforço e o tempo? O sol nascente e o sol poente? Minha sina de carregar essa pedra? O recomeçar todos os dias? O continuar de um trabalho, como uma linha vertical cruzando a horizontal do tempo… Na labuta existe sinceridade e um amor imenso à eternidade. Como as pessoas são tolas de subestimar os velhos: eles têm, dentro de si, dentro dessa aparência desdentada, toda a lembrança do corpo jovem, mais a memória do que viram, mais a certeza de sua finitude humana. E é com essa boca de velho que lhes falo.
Além do mais, posso ser um velho, mas me sobraram força e braço para empurrar a pedra. Não sou um deus – mas sou imortal. Reconheço que é tentadora e bela a ideia de me libertarem. Mas penso… Vivi há mais de três mil anos; vi muita coisa. O mundo se transformou enquanto eu rolava a pedra, e aqueles que pensavam na condição de Sísifo não percebiam que Sísifo sabia e via o que se passava com o mundo. Agora os problemas da humanidade parecem tão gigantescos. Afinal, o degelo polar e a mudança de clima não são tão monumentais quanto a guerra entre deuses e titãs!? E a imensa fome pela qual passa um continente inteiro, não será do tamanho daquela que se enfrentou quando Hades raptou Perséfone, e Deméter, enlutada, pôs todos os campos a secar? Vocês, esquisitos meninos de formas estranhas, têm vontade de me libertar. E a que devo ser grato? Por me darem a ideia que podem me libertar ou por me oferecerem sua imortal e valorosa amizade? Ou ainda por passarem para o mundo, mais uma vez, minha velha história?
E lhes pergunto ainda: do que querem me salvar? Qual a dor que vocês sentem ao me ver rolando a pedra?
Sísifo é homem com a pedra; se a pedra parar, Sísifo não mais existirá.
Um abraço do amigo,
Sísifo