Soa bonito e esperançoso para aqueles que, como nós, vivem em um estado de… paz. Para quem convive com a guerra, porém, um dia assim, de cessar-fogo temporário, não é só bonito; mas incrivelmente útil. Num dia em que balas não voam, famílias conseguem visitar seus médicos, adolescentes podem brincar em praças, e as crianças, que crescem nesse ambiente de conflito, têm chance de conhecer, por fim, a paz, como é a paz, que barulho emite ou deixa de emitir, que cor possui. É uma janela de oportunidade e esperança aberta à construção de um mundo melhor e mais humano.
Jeremy Gilley parece aquele típico inglês – que deve ter sido punk, hippie, clubber – com o qual se esbarra às 22h45, desesperado para beber sua última pint de cerveja antes do pub fechar. No primeiro momento, sustenta uma conversa fria e calculada, um modo de se colocar agressivo, e mantém uma postura rígida, um ar que sugere revolta oprimida.
Nascido em 1969, em Southampton, na Inglaterra, aos doze anos tornou-se ator. Era dos piores da turma, sem qualificações, e sua mais relevante conquista acadêmica consistiu numa nota D, em cerâmica. Diziam que era disléxico. Quando criança, infeliz na escola, Jeremy pensava muito sozinho e assistia a todos os noticiários na televisão.
“Estava muito preocupado e assustado com o que estava acontecendo no mundo. Meus pais não eram mais casados, e isso me fazia pensar em relações de uma maneira geral. Eu era pequeno, solitário, disléxico, sofrendo bullying, e isso me fez tentar entender o que tudo aquilo que via na televisão significava”.
Aos dezessete anos, ingressou na Royal Shakespeare Company. Depois de uma década de carreira profissional como ator, Jeremy já fizera todo tipo de coisa, e começou a sentir que o conteúdo do trabalho com o qual estava envolvido realmente não era suficiente, e que deveria haver algo mais.
Nessa época, influenciado por um livro de Frank Barnaby – um físico nuclear que diz que não só a mídia, mas todos os outros setores têm enorme responsabilidade em que as coisas progridam –, pensou que talvez pudesse fazer algo, pois passara grande parte da vida próximo a uma câmera. Então, pôs-se a pensar na paz e numa maneira de usar seu trabalho de forma construtiva, para fazer a diferença.
Refletia: “Qual será o ponto de partida para a paz”? Foi quando percebeu que aquilo não existia, um local – um fato, uma ocasião – de onde largar, de onde dar início; que não havia um dia de unidade global, de cooperação intercultural, um momento em que a humanidade se reunisse e compartilhasse o encontro e o sentimento de convergência, de “estarmos juntos nisso”, e lhe ocorreu que, se nos uníssemos e cooperássemos, talvez encontrássemos a chave para a sobrevivência da humanidade. Se tivéssemos um ponto de partida, um dia em que parássemos e pensássemos na paz, aquela mobilização poderia mudar o nível de consciência a respeito das questões fundamentais que os homens enfrentam.
Em 1999, Jeremy lançou o projeto Peace One Day, a princípio como um documentário. Morando na casa da mãe, obviamente sem dinheiro, produzia, com amigos, shows e saraus literários em bares no oeste de Londres, de modo a levantar fundos e tocar adiante o projeto. Para o dia do lançamento, convidou milhares de pessoas ao teatro Globe, em Londres, onde Shakespeare apresentava suas peças, mas só 144 apareceram. A maioria, amigos e familiares. Isso não fez tanta diferença, pois se documentou tudo em vídeo, e o importante era mesmo o processo, não o resultado. “Costumavam dizer que a caneta era mais poderosa que a espada”. Jeremy achava que mais poderosa era a câmera – e que estar presente, simplesmente presente, naquele momento era algo realmente grandioso e promissor.
Começaram – ele e o grupo que se reuniu em função do projeto – a escrever para todos os chefes de estado, embaixadores, prêmios Nobel, ONGs, grupos religiosos, várias organizações etc. Propunham uma tentativa de unir todos os países em um único dia do ano para pregar a paz e a não violência. Jeremy percebeu, contudo, que uma série de estereótipos não seria suficiente, e que havia uma montanha a ser escalada, uma longa jornada a ser percorrida; que não importava se a tentativa falhasse ou tivesse êxito, decisivo seria desenvolver meios de articular as questões que há tempos o atormentavam. Será a humanidade fundamentalmente má? A destruição do mundo é inevitável? Devo ter filhos? É algo responsável de se fazer nessa realidade em que vivemos?
Gilley achou que o projeto duraria, no máximo, um ano, mas rapidamente começaram a chegar respostas para algumas cartas. Uma das primeiras, lembra-se, veio do Dalai Lama; e dizia: “Isso é uma coisa incrível, venha me ver. Gostaria de conversar com você sobre o primeiro dia de paz”. Foi quando Mary Robinson, presidente da Irlanda, declarou: “Chegou a hora de pôr essa ideia em prática”. Kofi Annan afirmou: “Isso será benéfico para minhas tropas que estão em terra”. A Organização da União Africana, na época dirigida por Salim Ahmed, pronunciou-se: “Tenho de conseguir envolver os países africanos”. Oscar Arias, ganhador do Nobel da Paz, atual presidente da Costa Rica, comprometeu-se: “Farei tudo que puder”. Então, Jeremy foi ver Amr Moussa na Liga dos Estados Árabes, conheceu Mandela nas conversações de paz de Arusha, e assim sucessivamente, enquanto defendia sua causa e lutava por provar que sua ideia fazia sentido.
Levou dezoito meses escrevendo cartas e trabalhando nos corredores da ONU para conseguir um encontro com Kofi Annan. Finalmente, no dia 7 de setembro de 2001 – “o mais importante da minha vida” –, doze anos depois de ter iniciado o movimento, Gilley viu a ONU, por unanimidade, aprovar a Resolução 55/282, que designava oficialmente o 21 de setembro como dia internacional da paz. “Estava sentado sozinho, com minha pequena câmera, e foi um momento realmente maravilhoso. Annan daria uma coletiva de imprensa mais tarde naquela semana. Minha equipe e eu chegamos lá às oito da manhã e, enquanto ligávamos nossos equipamentos, o primeiro avião atingiu o World Trade Center.” Era dia 11 de setembro, e a coletiva de imprensa nunca aconteceu.
Em seu filme de 2008, The Day After Peace, 11 de setembro é ponto central. Sete anos depois dos atentados, ele e Jude Law, a quem conhecera através de um amigo ator, encontraram-se no Afeganistão para o cessar-fogo que permitiu a primeira vacinação em massa de crianças contra a pólio. Longe de desistir, os ataques de 11 de setembro o deixaram ainda mais determinado a vencer e transformar esse dia em uma instituição mundial.
Muito criticado por usar rostos famosos, como os de Angelina Jolie e Stella McCartney, em suas campanhas, Jeremy teve em Law, principalmente no Afeganistão, muito mais que apenas uma face célebre. “Toda a carreira, todas as reuniões, Jude fez comigo. Foi um verdadeiro divisor de águas, porque, de repente, todo mundo estava interessado”. Nada como o aval de uma celebridade.
Em certos momentos, Gilley viu-se em situações de real perigo, sobretudo quando ficou cara a cara com o exército de crianças do Congo. Na Somália, esteve hospitalizado por três semanas. “A coisa mais difícil desses últimos anos foi a intensidade física e psicológica de trabalhar doze horas por dia, todos os dias da semana, e sentir meu corpo querer desistir”.
Depois de ver nascer sua filha, Rose, Gilley acha que não manterá o mesmo ritmo de trabalho e crê que não ficará mais tanto tempo fora de casa. Ainda pensa, contudo, em visitar entre vinte e trinta países em 2013, incluindo a Somália, para promover sua campanha. “Pela primeira vez na vida existe uma coisa mais importante pra mim do que eu” – diz, referindo-se à filha.
No próximo dia 21 de setembro, Gilley, que agora está por trás de grandes produções e eventos artísticos, irá produzir um concerto de Elton John em Londres, para o qual são esperadas mais de 60 mil pessoas – o maior encontro já organizado em torno da causa do Peace One Day. Nada mal para quem iniciou esta luta com pouco mais de cem apoiadores no Globe.
Discutindo essa edição da revista, e debatendo o tema com amigos e colegas de trabalho, uma questão comum a todos consistia em se a obsessão era algo bom ou ruim. Sempre considerei esse juízo como extremamente íntimo. A própria definição do que seja obsessão é complexa e, muitas vezes, de difícil identificação, especialmente pela pessoa “obcecada”. Ficar, porém, dezoito anos em busca de um ideal – sobretudo esse, com foco na comunidade global –, sob uma determinação incessante em chamar a atenção dos maiores líderes mundiais e mobilizá-los para que avaliassem e aprovassem sua proposta, definitivamente é obsessão de natureza saudável.