Mais filhos e menos emprego? O estigma profissional da maternidade
Maternidade e trabalho, aos maquinários conscientes e inconscientes da sociedade, são quase tão inconciliáveis quanto água e óleo: na medida em que a maternidade se apresenta, as oportunidades de trabalho parecem se esconder no fundo do copo.
Apesar de hoje em dia a disparidade de gêneros ser uma pauta quente que gera um ou outro avanço, a discussão muitas vezes acaba no campo da teoria, em especial quando colocamos sobre a mesa o desequilíbrio ainda colossal com que o mercado de trabalho lida com a maternidade e a paternidade. Segue sendo prática comum que, em entrevistas de emprego, se pergunte às mulheres se elas têm, ou planejam ter, filhos. Se a mesma pergunta for feita a um homem — o que acontece mas não chega a ser regra —, a resposta não tem o mesmo peso. Afinal, se a resposta for “não tenho e nem pretendo ter filhos”, perfeito; e se for “sim, sou ou quero ser pai”, tudo certo também, pois, no fim, a paternidade não ficará no caminho de ninguém já que ela não é tão demandante como a maternidade.
E, como se não bastasse a normalização da divisão desigual de tarefas e responsabilidades relacionadas à criança, quanto mais filhos uma mãe tem, menores são as suas possibilidades de encaixe profissional. O estigma é real com as futuras mães em estado de gravidez assim como para as mães recentes — e ninguém confirma isso de forma mais categórica do que os números.
Mais filhos, menos mercado
Em um novo levantamento do laboratório de estudos PUCRS DataSocial, feito a partir de microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), foi constatado que, de um total de 1,9 milhão de mães com três filhos ou mais, um número maior do que 40% estava fora da força de trabalho nos últimos três meses de 2022. A razão? Simples: as quase 800 mil mães estavam ocupadas e cansadas demais, física e emocionalmente, cuidando dos afazeres domésticos, dos filhos ou de outros dependentes.
Para que coloquemos os pingos nos is: a pesquisa da PUCRS embarca homens e mulheres de 25 a 50 anos que fazem parte de casais heterossexuais; e por “população fora da força de trabalho” entende-se profissionais que não estão empregados nem procurando oportunidades no setor formal ou informal.
Desde 2016 não vemos uma porcentagem tão alta quanto essa. E se esse número já parece grande sem a sua contrapartida, prepare-se.
No mesmo trimestre final de 2022, apenas 0,62% dos homens em casais com três ou mais filhos estavam fora da força de trabalho em razão dos afazeres domésticos ou do cuidado dos dependentes no quarto trimestre de 2022. Em comparação às quase 800 mil mães, essa porcentagem equivale a, praticamente (e somente), 12 mil. Há uma espécie de “jogo duplo” em ação: a pressão de ser uma mulher “independente” vem em escala menor do que a pressão de ser uma mãe ultrapresente. Caso contrário, adjetivos como “ausente” e “desnaturada” logo surgem, sobrepujando os impulsos sociais de empoderamento feminino — ou como queira chamar —, que por ora acabam perdendo a briga para o tradicionalismo.
Dificuldades da maternidade
A maternidade traz consigo uma série de demandas físicas, emocionais e práticas. O cuidado com um filho recém-nascido requer tempo, energia e atenção constantes. As mães muitas vezes se veem enfrentando noites sem dormir, amamentação, trocas de fraldas, consultas médicas e o desenvolvimento do vínculo afetivo com o bebê. Essas responsabilidades podem ser intensas nos primeiros meses, mas também se estendem ao longo dos anos à medida que a criança cresce.
Ao mesmo tempo, o trabalho é uma parte essencial da vida de muitas mulheres. O trabalho remunerado oferece independência financeira, realização pessoal, interação social e oportunidades de carreira. As mães muitas vezes enfrentam dificuldades em encontrar um equilíbrio adequado entre as demandas profissionais e familiares. Elas precisam se organizar para garantir que os cuidados com os filhos sejam atendidos enquanto cumprem suas obrigações no trabalho. No entanto, o que de partida já apresentaria desafios fica ainda pior quando sabemos que há um estigma perseverante e conciliar a maternidade e o trabalho vira um malabarismo ainda maior.
Uma das principais dificuldades enfrentadas pelas mães é a falta de suporte e políticas adequadas no local de trabalho. A disponibilidade de licença-maternidade e licença-paternidade remuneradas, horários flexíveis, opções de trabalho em meio período ou em casa, creches no local de trabalho e programas de apoio à maternidade podem fazer uma grande diferença na capacidade das mães de equilibrar suas responsabilidades. Por mais incrível que pareça, mesmo em 2023 — tempos em que em tese as empresas, pressionadas pelo momento, estão mais preocupadas em atender as pautas sociais —, em todo o mundo há casos de mães demitidas do trabalho assim que voltam da licença maternidade.
Outro desafio é a discriminação de gênero e os estereótipos arraigados em relação às mães que trabalham. Algumas mães enfrentam preconceito ou falta de oportunidades de carreira devido à percepção de que a maternidade pode interferir em sua dedicação ao trabalho. Desnecessário dizer que o mesmo não ocorre para um pai. Quando falamos de pais, a discriminação funciona às avessas: se ele estiver disposto a dividir as tarefas domésticas e todas as responsabilidades com a mãe, barreiras terão que ser quebradas. Ou seja, num estado natural, o mercado de trabalho não está preparado para estar de portas abertas para a equidade entre paternidade e maternidade, favorecendo intrinsecamente os valores de uma sociedade patriarcal.
Além disso, é fundamental que a sociedade em geral reconheça o valor do trabalho das mães e forneça um ambiente que apoie sua capacidade de conciliar maternidade e carreira. Isso inclui políticas governamentais, apoio das empresas, mudanças culturais e uma divisão equitativa das responsabilidades familiares entre pais e mães.
Brasil
No Brasil, as mães têm direito a uma licença-maternidade remunerada de 120 dias (4 meses) de acordo com a legislação trabalhista. Embora seja um direito garantido, essa licença ainda pode ser considerada curta, pois o período inicial após o nascimento de um filho requer tempo para recuperação física, estabelecer vínculos com o bebê e ajustar-se às novas demandas da maternidade.
Dados do IBGE apontam que a diferença de pagamento entre homens e mulheres, que vinha caindo até 2020, voltou a subir e hoje é de 22%. Isso significa que uma brasileira ganha, em média, 78% do salário de um homem. Para reverter esse cenário, o atual governo anunciou um projeto de lei que prevê que os empregadores que pagarem salários diferentes para uma mulher que tenha o mesmo tempo de empresa, a mesma função e escolaridade semelhante a um empregado do sexo masculino poderão ser multados em 10 vezes o valor do maior salário pago na empresa.
O projeto também prevê a obrigatoriedade das empresas com mais de 20 funcionários de dar transparência às faixas salariais para permitir a fiscalização do Ministério do Trabalho. A proposta foi enviada ao Congresso e ainda terá que ser aprovada primeiro pela Câmara e depois pelo Senado. A ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, negou que a proposta possa resultar na redução da contratação de mulheres por empresas que querem evitar punições. Segundo ela, trata-se de uma visão misógina: “Se um empregador estiver discriminando uma mulher, se isso for um fator para ele não contratar uma mulher, haverá muitas empresas sérias, responsáveis e comprometidas com isso”.
De acordo com o site do Governo, que elenca os principais pontos do PL, “se o Brasil aumentar a inserção das mulheres no mercado de trabalho em um quarto até 2025, poderá expandir sua economia em R$ 382 bilhões — um crescimento acumulado de 3,3% ao PIB, segundo a OIT [Organização Internacional do Trabalho].” O presidente Luiz Inácio Lula da Silva é categórico, dizendo que, ao aceitar que as mulheres ganham menos que os homens exercendo a mesma função, há continuidade da violência histórica contra a mulher: “Este projeto de lei tem uma palavra que faz a diferença entre tudo o que já foi escrito sobre trabalho igual para homens e mulheres: ‘obrigatório’ pagar salários iguais.”
Mudar a narrativa
Em uma realidade de estrutura patriarcal heteronormativa, qualquer pessoa que não seja um homem branco e hétero sai perdendo. A carreira de um pai tem chances substancialmente maiores de continuar tendo um papel central do que a carreira de uma mãe, cuja vida profissional se vê ameaçada desde um primeiro momento. A leitura, apesar de dolorosa, é clara: há forças maiores em jogo aqui, algo que vai muito além das preferências pessoais de qualquer casal. Existem razões estruturais, bem como razões culturais, para isso. E, embora nem todos os pais sejam cúmplices disso, eles ainda se beneficiam disso.
Quanto mais falarmos sobre o assunto, mais as oportunidades de mudar a narrativa existirão. Isso é verdade e não há quem negue. Mas a real esperança é que esse discurso se torne palpável no dia a dia de quem mais precisa. Para tanto, é fundamental que a sociedade em geral reconheça o valor do trabalho das mães e forneça um ambiente que apoie sua capacidade de conciliar maternidade e carreira. Isso inclui políticas governamentais, além de apoio das empresas, mudanças culturais e uma divisão equitativa das responsabilidades familiares entre pais e mães.
A mudança é estrutural e, portanto, a longo prazo. Espera-se, ao menos, que o prazo não seja assim tão longo.