As Quatro Estações, de Cy Towmbly (1993 – 1994)
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Orgasmo: o condutor de culturas e a essência do universo

Não subestime o orgasmo. Ele nunca deve ser reduzido ao “clímax sexual” — não que isso seja pouca coisa, mas, no caso, a síntese não vem a calhar. Seria como descrever um livro de Dostoiévski ou Clarice Lispector tão somente como “páginas e palavras”. Pensar na história do orgasmo é mais do que pensar apenas na história da gratificação física humana. Para muito além disso, quando realmente paramos para colocar os pingos nos “is”, logo vemos que ele pode ser o epicentro, aquele condutor que não se vê, das meneiras com as quais homens, mulheres e parceiros do mesmo sexo formam e mantêm relacionamentos. Isso, por sua vez, tem sido crucial para direcionar o modo como a noção de família se desenvolveu, para determinar facetas importantes de como vivemos em comunidade e até mesmo para moldar, por meio do casamento e da herança de propriedade pelos filhos de uma união sexual, como distribuímos terras e bens materiais. E por aí vai, com um aspecto determinando o outro: esse “clímax sexual” talvez seja o grande ponto G da História da humanidade.

Meg Ryan em “Harry & Sally – Feitos Um Para O Outro” (1989), de Rob Reiner. Ao simular um orgasmo em pleno restaurante, uma senhora sentada à mesa ao lado diz para a atendente: “Vou querer o mesmo que ela.”

A busca pelo orgasmo, a vontade de senti-lo, é desde sempre um dos impulsos mais poderosos que temos. Sua importância e seu poder de mobilização se manifestou em todas as culturas e países do mundo. O que torna tudo mais interessante é que, ao longo da História, a sexualidade acontece de jeitos, intensidades e em momentos diferentes. E isso vale mesmo para aqueles que, por alguma razão, não têm orgasmos. A sexualidade humana, evidentemente, não é um conceito cravado em pedra, não é uma linha reta de comportamentos e visões. Os bailes de máscaras de Veneza, lá pelos idos do século XVII, decerto eram diferentes do que, digamos, o mundo sexual dos aplicativos de relacionamento (apesar deste funcionar, ao menos em parte, um pouco como um jogo de máscaras). Cada qual trata o sexo e o orgasmo à sua maneira, de acordo com o metrônomo da própria época e do contexto cultural. Esse ato sexual, mesmo quando não sexual propriamente dito, serve de instrumento na ascensão social de pessoas (na maioria homens), ricocheteando na evolução cultural inventada pelos humanos. 

O orgasmo é então um ator cultural e, no fim, o impulso sexual é moldado não só pelos hormônios, mas também, e talvez principalmente, pela sociedade. 

Humano: às vezes excitado, mas sempre criativo 

O orgasmo é um ótimo exemplo da incrível inventividade humana. Que outro ser é dono de um gênio capaz de intelectualizar e atribuir tantos significados a fenômenos naturais, que, em última análise, nada mais são do que necessidades da vida? E, no meio do caminho, ainda descobrir novas formas de prazer, provenientes dessa peculiar criação de sentidos. Isso, aliás, acontece com mais frequência do que nos damos conta. Da necessidade de comer e da consequente descoberta de cozinhar alimentos, desenvolvemos a gastronomia; da necessidade de comunicar e da consequente evolução da linguagem, desenvolvemos a poesia. E, a partir da necessidade de reproduzir, transformamos o subproduto de nosso ato reprodutivo, o fenômeno do orgasmo, em uma busca de lazer que seguimos por puro prazer.

Richard Dawkins, autor polêmico de obras como Deus, Um Delírio e um dos principais pensadores de biologia evolutiva do mundo, chama a atenção para um fato que, sob os termos aqui discutidos, pode ser elucidativo: a contracepção vai, de forma inerente, contra os ditames darwinianos mais fundamentais, uma vez que oferece o prazer do sexo sem a reprodução. É o sexo pelo prazer e nada mais. Ele sugere que a explicação para tal comportamento é que o cérebro humano desenvolveu sua própria versão sobre o que é a sobrevivência.

Richard Dawkins fotografado no New College Oxford. Foto: Charlie Clift.

“Na natureza, onde não há contraceptivos, o desejo sexual leva à cópula. A cópula leva a filhos. Isso é tudo que os genes precisam. No mundo moderno, foram inventados os anticoncepcionais, assim é possível gozar da cópula sem que se pense em filhos. E é isso que nós fazemos o tempo todo, o que é anti-darwiniano, contrário aos ditames dos genes egoístas. Recebemos cérebros moldados para desfrutar do sexo. Também recebemos cérebros moldados para desfrutar de vários outros tipos de prazeres hedonistas. (…) Alcançamos o melhor dos dois mundos do ponto de vista do nosso próprio cérebro, mas não, é claro, do ponto de vista do gene.”

Richard Dawkins, em entrevista, ecoando a teoria contida no seu livro O Gene Egoísta (1976)

Ou seja: no sexo por prazer, o cérebro busca e experimenta o prazer como mais um método de sobrevivência. 

Mais do que prazer: energia vital e comunhão

Embora seja uma experiência universal, as percepções, simbolismos e representações culturais do orgasmo variam em diferentes sociedades ao redor do mundo. Na cultura ocidental, o orgasmo é frequentemente associado ao prazer, intimidade e satisfação sexual. É visto como um aspecto natural e desejável da atividade sexual, e é frequentemente representado de forma positiva na arte, literatura e mídia. Já em algumas culturas orientais, como a chinesa e a indiana, a coisa é um pouco diferente. Mais do que mero prazer carnal, o orgasmo é considerado uma parte integrante da filosofia taoísta e do tantra. Nessas tradições, ele é tido como uma fonte de energia vital (chi ou prana), que pode ser canalizada e cultivada para a saúde, bem-estar e espiritualidade. 

Shunga, nome dado à arte erótica japonesa, de Katsushika Hokusai.

Na história sexual da Índia, pouco foi documentado antes do famoso Kama Sutra, por volta do século III. No entanto, há evidências registradas de que a China era tão sexualmente consciente quanto países ocidentais, geralmente considerados como o berço da civilização. E, ao que tudo indica, despidos do moralismo cristão característico do ocidente, o sexo por lá nunca foi associado a um sentimento de pecado ou culpa. De acordo com os antigos escritos chineses sobre sexo, o que mais define o ato é a ênfase no prazer orgástico por si só, independentemente de questões de reprodução. O assunto da concepção quase não aparece na literatura, tão extasiados eram os chineses pelas sutilezas mecânicas e emocionais do ato de fazer amor. 

No taoísmo, acredita-se que o orgasmo possa desempenhar um papel importante na circulação e no fortalecimento dessa energia vital. Para alcançar isso, os taoístas desenvolveram várias técnicas e práticas sexuais específicas. Uma dessas práticas é conhecida como “cultivo sexual” ou “sexo taoísta”, que envolve prolongar o ato sexual e retardar a ejaculação, permitindo que a energia sexual seja direcionada para outros aspectos do corpo, em vez de ser dissipada rapidamente. Os taoístas acreditam que essa prática pode levar a um aumento da vitalidade, saúde e, claro, espiritualidade.

Além disso, o taoísmo também enfatiza a importância do equilíbrio e da moderação em todas as áreas da vida, sendo a sexualidade apenas mais uma delas. De acordo com essa tradição, o orgasmo excessivo ou a busca obsessiva pelo prazer sexual podem ser considerados contraproducentes para o desenvolvimento espiritual. As práticas sexuais taoístas são muitas vezes consideradas parte de uma tradição mais ampla de práticas, que incluem meditação, exercícios físicos e outras técnicas. 

O Tantra, por sua vez, define o orgasmo como o resultado feliz e indescritível da interação entre o potencial sexual dos dois amantes, produzindo uma polarização das energias bioelétricas na forma de uma liberação de tensão estática semelhante ao trovão. As raízes do Tantra datam aproximadamente de 1500 a.C., sendo encontradas em antigos textos védicos. No entanto, o Tantra emergiu como uma tradição distinta que se desenvolveu paralelamente aos Vedas — a língua indo-europeia falada na Índia de então — e diferia em suas práticas e abordagens. Uma das teorias sobre as origens do Tantra sugere que sua gênese se deu como uma reação à rigidez e formalidade dos rituais védicos. Ele buscava uma abordagem mais prática e experiencial da espiritualidade, enfatizando a união e a interação entre o divino e o humano, o masculino e o feminino, o corpo e a mente. Os yantras e mandalas tântricos indianos frequentemente incorporam símbolos de união e prazer sexual, representando o orgasmo como essa expressão de uma energia que vai além do plano físico.

Mandala da divindade budista Chakrasamvara (aprox. 1700-1800)

O orgasmo, portanto, produziria em cada um dos amantes, separadamente ou simultaneamente, um profundo sentimento de contentamento com ecos sincronizados em cada plano de seu ser. A prática envolve aprender a estar presente no momento, a explorar o corpo e os sentidos, a cultivar a intimidade emocional e a canalizar a energia sexual para fins espirituais.

Perpassando culturas ao redor do mundo, percebe-se alguns fatores comuns nas interpretações do que é o orgasmo, em especial o que diz respeito à aura etérea. Em várias culturas indígenas, por exemplo, ele é frequentemente associado a rituais sagrados e celebrações da fertilidade, visto como um ato de comunhão com a natureza e com os poderes divinos que governam a vida e a procriação. No contraponto interessante da cultura islâmica, muito embora a sexualidade seja vista como uma parte natural da vida, sendo valorizada dentro dos limites do matrimônio e com moderação, o orgasmo é considerado um presente de Deus e uma expressão de amor e prazer entre um marido e uma esposa dentro do casamento. 

Há um certo consenso: esse êxtase terreno tem o condão de elevar ao plano celestial. 

Definições e mais vislumbres divinos

O que realmente acontece com homens e mulheres quando atingem o orgasmo? Como o processo iniciado nos centros nervoso e psicogênico se traduz no vascular e no muscular? A descrição biológica soa um tanto quanto fria e, com frequência, nem mesmo as descrições literárias chegam lá. 

Nobuyoshi Araki, com a série “Orgasmos”

Temos nomes diferentes para o nosso objeto de estudo: clímax em português e climax, sem acento, em inglês; sukun em urdu; trupti em tâmil; e tantos outros. Ter um nome, no entanto, não significa saber descrevê-lo. Como você se sairia numa prova caso respondesse “A Hora da Estrela” para a questão “Descreva a principal obra de Clarice Lispector”? O dever da dissertação é o que nos pega de surpresa. Por onde começar? Parece haver tantas descrições, mas, ao mesmo tempo, poucas de fato dignas das sensações per se. Por que é tão difícil? De duas, uma: ou isso comprova a subjetividade e a intimidade extrema da experiência, ou, mais do que isso, comprova que nos perdemos tanto no calor do momento que refletir sobre ele a posteriori jamais se equipara ao que foi vivido. Como a mais complexa das poesias, trata-se de versos que se perdem na tradução.

É claro que há descrições que evocam com eficácia um pouco das rajadas elétricas que tanto fazem nosso corpo pinicar, inclusive tempos depois do ocorrido. O escritor britânico, Toby Young, em um livro autobiográfico de 2001 chamado Como Fazer Inimigos e Alienar Pessoas, faz uma descrição pós-orgásmica comovente:

“De repente, tudo pareceu encolher de tamanho, como se eu estivesse me afastando da cena a cento e sessenta quilômetros por hora. Só que não era uma sensação espacial, nem um movimento linear. Era como se a gravidade que mantinha minhas emoções sob controle tivesse desaparecido. Era como estar na ondulação do mar, mas não exatamente. Acima de tudo, havia a sensação de estar fora do tempo, o que Freud chamou de ‘a sensação de eternidade’. Era como tocar algo com uma parte de mim que eu normalmente não conhecia. 

Senti como se tivesse feito contato com a própria essência do universo.”
(Richard Toby, em Como Fazer Inimigos e Alienar Pessoas, 2001)

Salvador Dalí, “Visage du Grand Masturbateur” (1929)

O fato de que muitas culturas ainda acreditam que os orgasmos são experiências místicas, convenhamos, não chega a surpreender. Qualquer um de nós consegue enxergar a sensação arrebatadora do orgasmo e pós-orgasmo como algo paralelo a uma experiência religiosa. A descrição inspirada de Toby Young, quase uma parábola bíblica, deixa isso claro. Mas devemos ter em mente que isso só pode acontecer a partir do momento em que os seres humanos começaram a desenvolver a espiritualidade como uma busca por significado, propósito, inspiração e respostas sobre o infinito que existe na vida. Seria o “Meu Deus!”, tão gritado nessas circunstâncias, mais um indício da experiência etérea que é o orgasmo? É comum que tomemos essa sensação corporal com uma sensação impressionante, reveladora, sentimento metafísico místico de harmonia com o universo.

Ainda hoje, há uma literatura ampla que argumenta a favor do orgasmo como uma experiência mística. O movimento hippie dos anos 1960 foi pioneiro ao entender que os antigos hindus, maias, astecas e egípcios tinham orgasmos melhores e mais significativos do que os consumistas modernos. Crescer num mundo cristão é crescer num mundo em que o prazer sexual, como uma questão de política, é impregnado de culpa, além de ser altamente reprimido também em parte como uma estranha afirmação da superioridade do ser humano sobre os animais. Os hippies, então, foram atraídos pela junção do êxtase sexual ao êxtase religioso. O que era excomunhão para uma comunidade, era apoteose para outra.

Mas nos dias pré-cristãos, principalmente nos milênios do Antigo Testamento, não havia nada de impiedoso em gostar de sexo. Na verdade, fazê-lo era bastante religioso. Os êxtases do místico teísta são intimamente relacionados à união sexual, como alma e Deus performando um ato carnal bigâmico. Se é que há blasfêmia no paralelo entre o orgasmo e a aproximação mística com Deus, a blasfêmia não está na comparação, mas na transferência de responsabilidade de um dos únicos atos de que o ser humano é capaz que o torna semelhante a Ele, tanto na intensidade de união com os parceiros quanto na capacidade de, nessa união, sermos descobridores de novos mundos. 

No orgasmo, somos tão criadores quanto Deus.

Relaxa e goza

A alegria do orgasmo é uma forma de afetividade que indica nosso envolvimento primordial com o mundo. Não somos apenas seres receptivos que registram somente aquilo que nos aparece com forma e tamanho, somos também seres que, por nos importarmos profundamente com muito do que está por aí, elaboram interpretações pessoais que nos definem. Portanto, embora o orgasmo seja, em certo sentido, uma experiência solitária, incitando nossa consciência a se concentrar totalmente em nós mesmos, em nossos corpos e em nosso tempo pessoal, é também um ímpeto que nos força extasiadamente para fora, para o mundo e para os outros seres humanos. Mas, como qualquer outro evento perceptivo, é sempre uma experiência situada que ocorre dentro de algo que é mais amplo e maior do que as sensações puramente físicas que envolve. 

O orgasmo sempre foi, e sempre será, imbuído de mistério — e é aí que está a graça. Não há fórmula para chegar às nuvens, mas percorrer o caminho até lá é chegar à própria essência do universo.