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O sonho e o gigante

por André Tassinari

O mais famoso discurso da história completa 50 anos: de “I have a dream” a #ogiganteacordou.

“I have a dream that my four little children will one day live in a nation where they will not be judged by the color of their skin but by the content of their character. I have a dream today!”

Essas são as mais famosas palavras do mais famoso discurso da história. Com elas, Martin Luther King simbolizaria o grande momento de virada na luta por direitos civis nos EUA (foram proferidas durante a Marcha sobre Washington, em 28 de agosto de 1963, que reuniu a marca histórica de 250 mil manifestantes e foi fundamental para a aprovação da Lei dos Direitos Civis e da Lei do Direito ao Voto nos dois anos seguintes). Foi um verdadeiro wake-up call para o absurdo que era a disparidade entre o que a Constituição pregava e a realidade dos negros – que eram impedidos de votar e viviam em “apartheid” em alguns estados.

#ogiganteacordou. Cinquenta anos depois, um outro wake-up call aconteceu no Brasil. Em dezenas de cidades, em vários dias de junho, milhões de pessoas saíram às ruas para protestar. A causa inicial era o cancelamento dos aumentos nas tarifas de transporte público (objetivo alcançado), mas a insatisfação latente na população criou uma avalanche de demandas: melhorias na saúde, na educação, na segurança. E parecia claro que para conseguir tudo isso seria necessária uma reforma do sistema político, para combater a corrupção de maneira eficaz e fazer com que os recursos públicos fossem usados de forma adequada, orientados pelos interesses da população, e não dos políticos.

O que um sonho de cinquenta anos pode ensinar a um gigante que acabou de despertar? Com a palavra, o reverendo King:

“There are those who are asking the devotees of civil rights, “When will you be satisfied?”

Assim como nas manifestações de junho, em 1963 havia a crítica de que as demandas eram muito ambiciosas, que os manifestantes nunca ficariam satisfeitos. Os objetivos dos brasileiros foram tachados de difusos; na March over Washington for Jobs and Freedom, havia certa objeção em misturar as demandas por direitos com aquelas por empregos. No fundo, a luta tanto de lá quando de cá era por uma sociedade mais justa, com diversos objetivos complementares. Lá, não adiantava ter a “liberdade” conquistada cem anos antes mas não ter direitos iguais; e também não adiantaria ter apenas direitos, era necessário ter oportunidades. Aqui, não adianta ter liberdade democrática, conquistada há 25 anos, depois de outros tantos sob ditadura, se a democracia não representar o povo e não seguir os princípios da Constituição.

“1963 is not an end, but a beginning.”

O sonho é só o começo. Os resultados vão aparecendo lentamente, ano após ano, década após década. Os pessimistas dirão que a questão da discriminação ainda é grave nos EUA, com a taxa de desemprego dos negros sendo o dobro da dos brancos desde a década de 1960, e com casos de preconceito como o de Trayvon Martin e das revistas preventivas a negros e latinos em Nova York. Mas, além do detalhe de ter um presidente negro reeleito na Casa Branca, se olharmos para alguns números, não dá para negar que a situação de vida dos negros melhorou muito.

Em 1962, 49% dos brancos e 25% dos negros completaram o high school; 10% dos brancos cursaram faculdade contra 4% dos negros. Em 2012, 88% dos brancos e 85% dos negros terminaram a escola, e 31% dos brancos e 21% dos negros, a faculdade.

Há cinquenta anos, a renda média dos negros era de 14 mil dólares (em valores atuais) e a dos brancos, 25 mil. Hoje, enquanto a dos brancos é de cerca de 40 mil dólares, a dos negros é próxima a 30 mil – que é uma renda média comparável a de países como Holanda e Suécia.

Mas o melhor dado não é o que compara brancos e negros de maneira separada, e sim o que os mistura. Até a década de 1960, o casamento inter-racial era proibido em alguns estados americanos, e menos de 1% dos casamentos envolviam pessoas de “raças” diferentes. Esse número cresceu para 7% na década de 1980, e hoje já passa de 15%.

No Brasil, os idos de junho também devem ser encarados como o início de um longo percurso. Poderíamos parafrasear King dizendo que “R$ 0,20 é só o começo”, considerando a redução no preço das passagens uma vitória inédita e simbólica da “voz das ruas”.

“And they have come to realize that their freedom is inextricably bound to our freedom. We cannot walk alone.”

Um dos grandes méritos de King foi sua capacidade de coalizão. Ele conseguiu unir diversos setores da sociedade em torno de uma causa, mesmo tendo foco nos negros. E percebeu que as grandes mudanças são aquelas em que a sociedade toda ganha, e não apenas um grupo. Na Marcha sobre Washington, 25% dos manifestantes eram brancos. Havia pessoas de todas as classes e profissões. Afinal, a luta pelos direitos civis beneficiaria não só os negros, mas também as mulheres e outros grupos discriminados.

Pena que a ideia de perseguir objetivos comuns benéficos à sociedade, a despeito de diferenças pessoais ou políticas, seja uma raridade. Hoje, tanto os EUA como o Brasil apresentam disputas políticas que prejudicam o andamento de projetos do interesse do país. Obama e Clinton salientaram esse problema em seus discursos na celebração dos cinquenta anos da Marcha sobre Washington. E FHC sintetizou em recente artigo: “não dá para perceber que quando o barco afunda vamos todos juntos, governo e oposição, empregados e empregadores, os que estão no leme e os que estão acomodados na popa?”

Para que um país avance é preciso que forças diversas se alinhem em torno de ideias e ideais, e não de interesses pessoais e político-partidários. Nisso o Brasil tem uma vantagem em relação aos EUA: há mais espaço para conciliação já que a bipolarização partidária não é um fato consumado.

“We must not allow our creative protest to degenerate into physical violence.”

King era defensor da não-violência. Por razões ideológicas e estratégicas: sabia que, se o movimento por direitos dos negros se destacasse pela violência, perderia o apoio de grande parte da sociedade e dos políticos, prejudicando o sucesso da causa. Era contra os métodos violentos adotados pelos Black Panthers, e certamente seria contra as ações dos black blocs. A força de um movimento está no seu poder de agregar, e os grupos violentos são desagregadores.

“I am happy to join with you today in what will go down in history as the greatest demonstration for freedom in the history of our nation.”

King tinha sentido histórico, próprio de um líder. Para que movimentos sociais tenham sucesso, é preciso lideranças tanto na sociedade civil como na política. King foi o catalisador, mas, sem a liderança política de Kennedy (e de Johnson, seu vice, que assumiu quando morreu), o movimento teria tido seu impacto reduzido.

Uma das características da manifestação no Brasil, assim como de outras manifestações contemporâneas, é a ausência de lideranças. Assim fica mais difícil traduzir a “voz das ruas”. Apesar disso, a presidente Dilma fez uma boa leitura das demandas – mas as ações que propôs a respeito não têm tido vida fácil.

Um líder é um símbolo, uma voz que representa muitas outras vozes. Nesse sentido, uma liderança importante que surgiu no país foi a do ministro Joaquim Barbosa. Em suas declarações e ações como presidente do STF ele tem mostrado representar grande parte da população, o que o levou a ser bem cotado nas pesquisas de intenção de voto para 2014, apesar de negar que possa concorrer à Presidência.

Mas quem mais cresceu nas pesquisas após as manifestações foi Marina Silva, prestes a tirar sua Rede do papel. A Rede defende um modo diferente de fazer política, que é alinhado com a “voz das ruas” mas visto por muitos como ingênuo. Tanto que seus apoiadores são chamados de “sonháticos”. Bem, o sonho é só o começo – mas é um bom começo.

“And so even though we face the difficulties of today and tomorrow, I still have a dream.”