#16RenascimentoCulturaSociedade

Editor convidado: Eduardo Wolf

por Eduardo Wolf

Felipe Cohen, Livro, 2010 [detalhe]

“Todas as grandes épocas da Civilização viam-se a si mesmas como parte da História, tanto no papel de herdeiras quanto no de transmissoras.” Essa síntese notável é de autoria de Sir Kenneth Clark, o brilhante historiador da arte inglês que ganhou fama para muito além dos circuitos eruditos ao estrelar a série Civilisation, em 1969, na BBC. Muito apropriadamente, aliás, encontramos a frase no capítulo dedicado à civilização italiana do século XV— o quarto dos treze episódios do programa — e ambientado em Florença, possivelmente a cidade mais intimamente associada ao grande movimento de energias individuais de toda espécie que recebeu o muito justo nome de “Renascimento”. Ali, a retomada dos modelos de Grécia e Roma encontraria expressão na condução política da cidade e no cultivo das virtudes humanas; no engenho como que ilimitado dos construtores e arquitetos; na representação inigualável da beleza das formas, na escultura como na pintura. Essa “grande conversação” com os gigantes intelectuais do passado, contudo, nada tinha de passiva: imitar os antigos para criar algo novo, na expressão mais que acurada de um dos precursores do humanismo florentino. O novo que nasce desse diálogo com a tradição não é simples novidade, vem de nobre linhagem espiritual e não é esquecido com a moda seguinte. O oposto de nossa experiência contemporânea, aliás.

Sir Kenneth Clark é, como já presume o leitor, um de meus heróis intelectuais; como em outros de meu panteão pessoal (George Steiner, Bernard Williams), sobressai nele a paixão da entrega à vida do espírito, aquela que dedicamos às artes, às letras, ao pensamento. Em uma palavra, uma paixão pelo conhecimento que rechaça a especialização burra, mas nunca a profundidade; que quer abraçar o mundo dos saberes, mas sem se contentar com suas superfícies limitadoras. Um ideal regulador, sem dúvida. E compartilho-o, agora, com os leitores de Amarello neste número que não, não trata do Renascimento como período histórico, mas que é, quero crer, humildemente tributário dessa longeva e louvável tradição humanística. Na apaixonada descrição dos murais de Bonampak feita por Alberto Barros; no envolvente exame de A Tempestade de Shakespeare conduzido por Jerônimo Teixeira; no esmero formal de carregados sentidos das obras de Felipe Cohen; ou nos versos de potente lirismo refletido de Pedro Gonzaga, não será difícil ao leitor reconhecer vivas as forças que deram sentido à própria noção de renascimento. Ouvir o diálogo aberto com as tradições que cada vez mais constituem nossa condição presente ou ver surgir, das imponentes ruínas do espírito do passado que ainda nos delimita, as identidades novas que nos marcam a todos. Herdando e transmitindo, criamos.

No acidentado percurso que segue sempre todo legado que recebemos, recriamos, com apropriações várias, a ideia mesma de renascer. Refletimos sobre nossas experiências pessoais e, no gesto largo de ressignifcação que nos é próprio, encampamos o renascer, que se vê incorporado ao terreno de nossa subjetividade, como fazem Mara Gabrilli e Emmanuel Rengade; inquirimos a própria trajetória dessa herança, seus eventuais desvios ou suas essências extraviadas, como o leitor verá nos textos de Thiago Blumenthal e Eduardo Pohlmann; ou simplesmente vertemos em palavras, esse meio ora opaco, ora translúcido, as imagens, ideias e inquietudes que uma simples sugestão semântica (“renascimento?”) nos acomete, como nos textos de Hermés Galvão e Vanessa Agricola. Na arquitetura última do arco de temas que o leitor encontrará nos textos que seguem, por que não reconhecer nas tensões entre o indivíduo e a sociedade, tema político por excelência, um como que “duomo de Brunelleschi” que domina as paisagens físicas e humanas que aqui se desenham? Da entrevista com Fernando Schüler sobre nossa condição de país ao relato de Eduardo Carvalho sobre o ideal de indivíduo renascentista, passando pela evocação inevitável de Maquiavel por Léo Coutinho, o elemento político, em seu melhor sentido, ergue-se no centro dessa grande reflexão sobre nossos múltiplos renascimentos que esta edição traz a você, leitor. Espero ter honrado a tradição — e, quem sabe, deixado algo novo.