“Multimídia” talvez seja um termo que não acrescente nada, ou quase nada, ao leitor, mas que dá ao artista algo fundamental: a liberdade de fazer o que bem entende. Antônio Sobral é desses artistas multimídia, que escapa à armadilha da definição e transita solto entre desenho, instalação, fotografia, colagem, publicação, poesia, vídeo etc. É vã toda tentativa de enxergar as bordas de sua produção: quando o olho vê um limite, o trabalho de Antônio esparrama-se noutra direção em ritmo mutante, migrante, vivo. Talvez por isso seja pouco prolífico tentar conhecê-lo como quem cerca um terreno, ou como quem contorna um corpo, dividindo o dentro e o fora, o que é e o que não é. Em impulso constante, ele se atualiza, se desfigura, se contradiz. Quem sabe, em lugar de tentar definir os lastros de seu trabalho, seja mais interessante olhar para as forças motoras que o embalam e para os efeitos que provocam.
“Sim, quero dizer liberdade”
Nesse ir e vir de suportes e mídias, uma preocupação com a construção de imagens. São cortes e justaposições, em que se misturam objetos encontrados, figuras de livros, imagens do Google, fotos analógicas, stills de filmes, desenhos a mão livre e tantos outros materiais. Por meio de texturas e camadas, de pausas e fluxos, Antônio tece uma inquietante narrativa imagética, na qual reúne, num só golpe, o estranho e o familiar. Nela, o ruído de imagens banais converte-se em silêncio de enigma, porque, embora tenham uma enorme carga de sentido, permanecem sempre em alguma medida inacessíveis. Na repetição de símbolos, um esvaziamento da linguagem. Na sobreposição de gestos, um apagamento do próprio gesto. O excesso cai para dentro de si mesmo, num contradito vazio.
“Todo o planeta transformava-se em vertigem: imagem”
Não deixam de ser curiosos os efeitos dessas insistentes justaposições que, em dado momento, irrompem numa espécie de avesso vertiginoso. Digo “espécie de avesso” porque as imagens de Antônio Sobral não operam através de relações claras ou por meio de oposições definidas, mas arriscam-se em direção a uma certa desmesura, que aceita correr o risco de esbarrar na angústia, ou mesmo de ir um pouco além. É pelo uso e pelo desmonte das próprias imagens hegemônicas da dita civilização que Antônio inventa contrarrituais: atravessa por dentro as estéticas normativas e faz delas um teatro dissidente. Nesse constante transbordamento do desenho, o artista esgarça binarismos terrenos e acena ao ambíguo – confuso, nebuloso, movediço. Ao reunir e reordenar fragmentos em colagens, o artista cria imagens capazes de revelar, em sua precariedade proposital, os funcionamentos normativos da lógica identitária. Se o pensamento e a linguagem são geralmente formulados pela divisão em opostos – homem/mulher, normal/anormal, heterossexual/homossexual –, das imagens de Antônio Sobral saltam híbridos. A ambiguidade nelas contida cumpre, então, um papel ímpar, na medida que busca dissolver as formas de controle binárias e usa a desidentificação como possibilidade para construir subjetividades desviantes.
“É no mistério que brota o desejo. Ele tem cabelos: cipós. […]”
Mas, se em alguns momentos sua obra oferece justaposições brutalistas de imagens da cultura, em outros transparece uma sensibilidade bucólica. Nas poesias surgem a paisagem natural do campo, a ruina arquitetônica da cidade, o tempo do tédio e da morte, o corpo frágil, embora aceso. A prevalência das duas dimensões e dos pequenos formatos também aponta a esse fascínio pelo mergulho solitário da composição, numa quase indiferença à materialidade mundana ou, talvez, numa rejeição ao fetichismo e ao espetáculo. Abre-se um labirinto intimista na obra de Antônio, onde colidem a opressão das normas sociais e os impulsos subterrâneos do corpo. Aparecem pele, sexo, violência; santos, cadáveres, texturas. Algo que oscila entre o medo e o gozo da predação. Algo de interrupção. Algo de nostalgia da infância. Talvez a experiência da natureza se aproxime tanto da exploração do próprio corpo como de uma busca espiritual. Tanto numa como noutra, há uma vontade libertária, que só não esbarra num lugar-comum porque se utiliza do desgaste da palavra liberdade para pensá-la e, quem sabe, reavê-la desde uma outra posição. Segue aqui a ambiguidade: as imagens que comunicam também confundem. Segue a narrativa enigmática, seguem as diferentes qualidades de reprodução, provenientes de diferentes fontes. O mesmo motor voraz apontado ao corpo mostra que é a partir das marcas deste mesmo corpo que se reconhecem os mecanismos da dominação social.
“[…] Da vagina sai uma caixa de música
A bailarina agarrada em correntes de ouro
Tripas antigas
Manga queima enjoa briga […]”
A uma sociedade obcecada pelo acúmulo e pela produção, Antônio devolve um acúmulo de indizível. Talvez não por acaso seu percurso tenha se dado longe de circuitos comerciais que demandam, classificam e visibilizam. A lógica inerente a seu trabalho é muito mais próxima aos espaços ditos artist-run, tipo de associação a que ele se vinculou por vários anos. Dentre as inúmeras e distintas propostas dos espaços artist-run, o trabalho de Antônio bebe principalmente das possibilidades de troca e de formação presentes nesse ambiente, mas também de um sentido colaborativo e de certa licença para experimentar sem a urgência de resultados conclusivos. Nesses espaços, os códigos e negociações vão para além da produção artística, sendo, em várias ocasiões, éticas gerais de convivência. É partindo deste modelo de fazer-em-conjunto que Antônio, acompanhado de alguns amigos artistas e pesquisadores, inicia a gestão de uma residência artística na fazenda cafeeira de seu pai, em São José do Vale do Rio Preto, interior do Rio de Janeiro. Dessas reuniões anuais, que duram quatro semanas, saem não necessariamente obras, mas encontros e, desses encontros, conversas, experimentos, afetos.
“Tirei as tuas roupas do armário. Carreguei-as pela casa como se carregasse o teu corpo – como se houvesse o teu corpo. […]*
* Trechos de poesias escritas por Antônio Sobral
Portfólio: Antônio Sobral
por Marília Loureiro