
“O medo fez aparecer em meus sonhos um pequeno monstro branco, peludo, o nariz comprido a arrastar pelo chão. Dizia-me sempre a mesma coisa: vim ensinar-te o essencial sobre a tristeza. (…) Tinha os olhos carregados de lágrimas e o susto que dava era só esse, o de ternamente impedir a felicidade. (…) Sabia de coração cada gesto e pensamento meu. Sabia como me devorar. (…) Algo mal distinto entre a realidade e a fantasia, (…) Queria ser meu gémeo. Imitava a expressão atónita do meu rosto e suspirava.”

Halla, uma menina de onze anos e personagem protagonista de A Desumanização, do escritor português Valter Hugo Mãe, acaba de descrever o que, pra mim, talvez seja a criatura mais aterrorizante que já pude imaginar. Desde que li esse pequeno trecho, a minha relação com a tristeza está mudando. Tenho mais medo e sinto que essa criatura me persegue cada dia mais serena e confiante – me olhando enquanto eu envelheço e, de forma bem astuciosa, constantemente tentando se incorporar à minha jovem e frágil maturidade. Ao mesmo tempo, sinto que nunca estive tão apto a enfrentá-la, porque agora podemos ter uma relação: a tristeza tem corpo, expressão e, não menos importante, beleza. Eu imbuí esse sentimento de uma natureza mitológica: dei vida a um monstro.
Precisamos dar vida aos monstros, bons e ruins, ou viverão para sempre como parasitas invisíveis nos preenchendo de sensações e impulsos caóticos, mas nunca de sentido ou propósito. Arte e mitologia se juntam para dar forma às coisas invisíveis – seres e paisagens que são portas para o que nos transcende, nos unindo sob uma mesma realidade humana. Quando o Baleia entrou em estúdio para gravar o segundo álbum, sentimos que o que tínhamos para dizer teria mais potência se construíssemos um pequeno universo em torno dele. Nos unimos à designer e ilustradora Lisa Akerman e o resultado foi uma espécie de enciclopédia perdida no tempo, contendo desenhos e estudos de uma terra desconhecida, repleta de beleza e violência, muito inspirada no mundo interior de uma criança que olha o mundo ainda despida de ceticismo, ainda sem defesas. Para cada uma das oito faixas do disco, há uma criatura e um ambiente que as representam. Gostaríamos de dividir com você um pouquinho dele.

Hiato – Há um excesso de informação e estímulos. Uma cidade violentada por enxurradas e redemoinhos feitos a partir de todos os materiais, sinais, ondas e energias produzidas por ela própria. Os habitantes me parecem como dutos de ar-condicionado. Seus corpos pare- cem produzir ruído branco e estática, como se a pele fosse um canal de TV dessintonizado. E eles aspiram tudo, sem discernimento, o tempo todo. Sinto como se fosse a abundância de tudo sem finalidade. Um ciclo sem fim de produção e absorção. A letra da música é um tipo de panorama poético da vida contemporânea numa cidade grande.

Duplo-Andantes – Vivendo e se locomovendo numa intricada rede de túneis subterrâneos que se espalha por todo o país, os duplo-andantes (tradução livre para doppelgänger) perderam a noção de identidade e a capacidade de se envolverem com qualquer coisa. Parecem passar a vida subjugados a um mecanismo, a um sistema. Não muito diferentes de uma colônia de formigas, só fazem expandir seu território, acumular recursos (nunca produzidos por eles mesmos) e servir uma criatura maior, enclausurada nas profundezas do chão, que nós denominamos de “o deus sem entusiasmo”. Todo duplo-andante já foi uma pessoa um dia. Mas agora vive como uma réplica de si mesmo, um espelhamento oco, desalmado. Tanto a criatura quanto a letra refletem o nosso entendimento de um tipo de gente muito comum na vida moderna.

Triz (Ida) – Imagino um lago que, ao invés de água, fosse preenchido por uma espécie de líquido amniótico. Um poço de consciência e vida irreprimível e caótico. Acho que tudo o que existe nesta terra estranha provém deste lugar. E essa quantidade infinita de criaturas que parecem um pouco girinos e que estão sempre brotando, se chocando, se embaraçando e perecendo. As poucas que conseguem resistir, sobreviver e, por fim, se desvencilhar desse embaraçamento passarão por um processo de metamorfose.

Volta – A criatura se liberta em um processo metamórfico. Sai da água e voa. É uma ideia mais simples. A música é basicamente sobre renascimento interior. Acho que não tenho muito a adicionar sem começar a apelar pro clichê. É a continuação da música anterior. A letra nasceu de uma fala proferida pelo mitólogo norte-americano Joseph Campbell:

Estrangeiro – Eu imagino essa metrópole tão grandiosa e soberba quanto suja e desorganizada. E as estruturas se atravessando, tudo se atropelando. Os cidadãos vivem em prédios vivos, estruturas gigantes que possuem vida própria. Habitam-nos como parasitas ou reféns, depende do seu ponto de vista. Mas existem dois cotidianos, a vida dos homens e a vida da cidade em si. A música é sobre a sensação de não pertencimento na sua própria cidade. Como se o lugar em que você vive tivesse uma agenda completamente separada da sua vida e você estivesse constantemente atrapalhando ela. É basicamente uma música sobre o Rio de Janeiro.

Língua – Chegamos ao deserto. Um lugar árido e não muito amigável. Dá pra ver que ele é repleto dessa espécie de cacto branco em forma de ferradura. Olhando mais de perto, percebe-se que existem duas figuras humanóides ali dentro. Elas são um só na base, dividem órgãos vitais. Mas passam todos os seus dias viradas uma de frente para a outra, sem conseguir se verem. Estão presas dentro da carapaça, privadas de sentidos e comunicação. E provavelmente nem sabem que existe esse outro ali, a um palmo de distância, “olhando” de volta. A música discorre sobre a ideia de como a comunicação humana é inerentemente fa- lha. No final das contas, existe uma gigantesca parcela da realidade que é inefável, que não pode ser nomeada. Uma infinitude de coisas e percepções que não podem ser alcançadas pelas palavras ou descrições. Estamos presos dentro da subjetividade das linguagens e à mercê do entendimento dos outros sobre essas linguagens.

Véspera – Imaginamos que podiam existir esses bichinhos microscópicos luminescentes que fossem mais leves que o ar. E vivem no céu, à deriva dos ventos e dos sistemas climáticos. São tão leves que às vezes ficam presos em determinadas nuvens mais pesadas que, com a ajuda de algum fenômeno meteorológico raro, podem recair sobre as cidades como uma névoa dourada. Ninguém nunca os vê. São percebidos apenas como o efeito belo que produzem durante esses raros eventos. É uma música de amor estranha. Sobre como coisas bonitas e profundas têm fim. Como algo que foi tão real pode se esgotar a ponto de ir embora com o vento. E como é importante aceitar. Existe uma leveza inabalável no mundo, maior que qualquer dor.

Salto – Acho que as florestas dessa terra são tão exuberantes quanto perigosas. E nenhum bicho é tão temido quanto esses pequenos insetos que nelas habitam. Na minha interpretação, ele pode ficar ‘zunzando’ em volta da sua cabeça durante horas e você tem que permanecer calmo e deixar ele cansar. Se você se desesperar ele ataca. Ele faz de você hospedeiro e em pouco tempo ele renasce de dentro de você como um duplo-andante. A música fala dessa criatura como uma personificação de todo o subconsciente paranoico, ansioso e amedrontado da sociedade, constantemente colocando ideias erradas na nossa cabeça, tentando desviar a gente de nossos instintos, desejos e sentimentos autênticos e profundos.