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Geografia de um disco

por Gabriel Vaz

Ilustrações de Lisa Akerman

“O medo fez aparecer em meus sonhos um pequeno monstro branco, peludo, o nariz comprido a arrastar pelo chão. Dizia-me sempre a mesma coisa: vim ensinar-te o essencial sobre a tristeza. (…) Tinha os olhos carregados de lágrimas e o susto que dava era só esse, o de ternamente impedir a felicidade. (…) Sabia de coração cada gesto e pensamento meu. Sabia como me devorar. (…) Algo mal distinto entre a realidade e a fantasia, (…) Queria ser meu gémeo. Imitava a expressão atónita do meu rosto e suspirava.”

Halla, uma menina de onze anos e personagem protagonista de A Desumanização, do escritor português Valter Hugo Mãe, acaba de descrever o que, pra mim, talvez seja a criatura mais aterrorizante que já pude imaginar. Desde que li esse pequeno trecho, a minha relação com a tristeza está mudando. Tenho mais medo e sinto que essa criatura me persegue cada dia mais serena e confiante – me olhando enquanto eu envelheço e, de forma bem astuciosa, constantemente tentando se incorporar à minha jovem e frágil maturidade. Ao mesmo tempo, sinto que nunca estive tão apto a enfrentá-la, porque agora podemos ter uma relação: a tristeza tem corpo, expressão e, não menos importante, beleza. Eu imbuí esse sentimento de uma natureza mitológica: dei vida a um monstro.

Precisamos dar vida aos monstros, bons e ruins, ou viverão para sempre como parasitas invisíveis nos preenchendo de sensações e impulsos caóticos, mas nunca de sentido ou propósito. Arte e mitologia se juntam para dar forma às coisas invisíveis – seres e paisagens que são portas para o que nos transcende, nos unindo sob uma mesma realidade humana. Quando o Baleia entrou em estúdio para gravar o segundo álbum, sentimos que o que tínhamos para dizer teria mais potência se construíssemos um pequeno universo em torno dele. Nos unimos à designer e ilustradora Lisa Akerman e o resultado foi uma espécie de enciclopédia perdida no tempo, contendo desenhos e estudos de uma terra desconhecida, repleta de beleza e violência, muito inspirada no mundo interior de uma criança que olha o mundo ainda despida de ceticismo, ainda sem defesas. Para cada uma das oito faixas do disco, há uma criatura e um ambiente que as representam. Gostaríamos de dividir com você um pouquinho dele.

Hiato – Há um excesso de informação e estímulos. Uma cidade violentada por enxurradas e redemoinhos feitos a partir de todos os materiais, sinais, ondas e energias produzidas por ela própria. Os habitantes me parecem como dutos de ar-condicionado. Seus corpos pare- cem produzir ruído branco e estática, como se a pele fosse um canal de TV dessintonizado. E eles aspiram tudo, sem discernimento, o tempo todo. Sinto como se fosse a abundância de tudo sem finalidade. Um ciclo sem fim de produção e absorção. A letra da música é um tipo de panorama poético da vida contemporânea numa cidade grande.

Duplo-Andantes – Vivendo e se locomovendo numa intricada rede de túneis subterrâneos que se espalha por todo o país, os duplo-andantes (tradução livre para doppelgänger) perderam a noção de identidade e a capacidade de se envolverem com qualquer coisa. Parecem passar a vida subjugados a um mecanismo, a um sistema. Não muito diferentes de uma colônia de formigas, só fazem expandir seu território, acumular recursos (nunca produzidos por eles mesmos) e servir uma criatura maior, enclausurada nas profundezas do chão, que nós denominamos de “o deus sem entusiasmo”. Todo duplo-andante já foi uma pessoa um dia. Mas agora vive como uma réplica de si mesmo, um espelhamento oco, desalmado. Tanto a criatura quanto a letra refletem o nosso entendimento de um tipo de gente muito comum na vida moderna.

Triz (Ida) – Imagino um lago que, ao invés de água, fosse preenchido por uma espécie de líquido amniótico. Um poço de consciência e vida irreprimível e caótico. Acho que tudo o que existe nesta terra estranha provém deste lugar. E essa quantidade infinita de criaturas que parecem um pouco girinos e que estão sempre brotando, se chocando, se embaraçando e perecendo. As poucas que conseguem resistir, sobreviver e, por fim, se desvencilhar desse embaraçamento passarão por um processo de metamorfose.

Volta – A criatura se liberta em um processo metamórfico. Sai da água e voa. É uma ideia mais simples. A música é basicamente sobre renascimento interior. Acho que não tenho muito a adicionar sem começar a apelar pro clichê. É a continuação da música anterior. A letra nasceu de uma fala proferida pelo mitólogo norte-americano Joseph Campbell: “We must be willing to get rid of the life we’ve planned so as to have the life that is waiting for us. The old skin has to be shed before the new one can come. If we fix on the old, we get stuck. When we hang onto any form, we are in danger of putrefaction. Hell is life drying up.”

Estrangeiro – Eu imagino essa metrópole tão grandiosa e soberba quanto suja e desorganizada. E as estruturas se atravessando, tudo se atropelando. Os cidadãos vivem em prédios vivos, estruturas gigantes que possuem vida própria. Habitam-nos como parasitas ou reféns, depende do seu ponto de vista. Mas existem dois cotidianos, a vida dos homens e a vida da cidade em si. A música é sobre a sensação de não pertencimento na sua própria cidade. Como se o lugar em que você vive tivesse uma agenda completamente separada da sua vida e você estivesse constantemente atrapalhando ela. É basicamente uma música sobre o Rio de Janeiro.

Língua – Chegamos ao deserto. Um lugar árido e não muito amigável. Dá pra ver que ele é repleto dessa espécie de cacto branco em forma de ferradura. Olhando mais de perto, percebe-se que existem duas figuras humanóides ali dentro. Elas são um só na base, dividem órgãos vitais. Mas passam todos os seus dias viradas uma de frente para a outra, sem conseguir se verem. Estão presas dentro da carapaça, privadas de sentidos e comunicação. E provavelmente nem sabem que existe esse outro ali, a um palmo de distância, “olhando” de volta. A música discorre sobre a ideia de como a comunicação humana é inerentemente fa- lha. No final das contas, existe uma gigantesca parcela da realidade que é inefável, que não pode ser nomeada. Uma infinitude de coisas e percepções que não podem ser alcançadas pelas palavras ou descrições. Estamos presos dentro da subjetividade das linguagens e à mercê do entendimento dos outros sobre essas linguagens.

Véspera – Imaginamos que podiam existir esses bichinhos microscópicos luminescentes que fossem mais leves que o ar. E vivem no céu, à deriva dos ventos e dos sistemas climáticos. São tão leves que às vezes ficam presos em determinadas nuvens mais pesadas que, com a ajuda de algum fenômeno meteorológico raro, podem recair sobre as cidades como uma névoa dourada. Ninguém nunca os vê. São percebidos apenas como o efeito belo que produzem durante esses raros eventos. É uma música de amor estranha. Sobre como coisas bonitas e profundas têm fim. Como algo que foi tão real pode se esgotar a ponto de ir embora com o vento. E como é importante aceitar. Existe uma leveza inabalável no mundo, maior que qualquer dor.

Salto – Acho que as florestas dessa terra são tão exuberantes quanto perigosas. E nenhum bicho é tão temido quanto esses pequenos insetos que nelas habitam. Na minha interpretação, ele pode ficar ‘zunzando’ em volta da sua cabeça durante horas e você tem que permanecer calmo e deixar ele cansar. Se você se desesperar ele ataca. Ele faz de você hospedeiro e em pouco tempo ele renasce de dentro de você como um duplo-andante. A música fala dessa criatura como uma personificação de todo o subconsciente paranoico, ansioso e amedrontado da sociedade, constantemente colocando ideias erradas na nossa cabeça, tentando desviar a gente de nossos instintos, desejos e sentimentos autênticos e profundos.