Fotos de Alex Costa e Dayrel Teixeira cedidas pelo Arte Ocupa.
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Amarello Visita: Arte Ocupa Mossoró

O Arte Ocupa nasceu em 2021 feito uma inquietação, a partir da necessidade de expressarmos a nossa arte nas ruas de Manaus. Realizado inicialmente na comunidade de Mossoró, na zona sul da capital do Amazonas, o projeto se identifica como uma pluralidade de existências da palavra “coletivo” — que significa “algo que ajunta”.

Ajuntar-se é um lugar, é moradia de algum sonho que não deve ser habitante do planeta Medo. É lar do planeta Esperança. O Arte Ocupa altera o olhar ácido, ocupa a visão de alguma criança que desvia da bala de mascar.

“Aqui o amor nem sempre dança!
O som nem sempre é música.
Bala. de. mascar.”

O que um dia já foi — e ainda é — dois malucos da praça, hoje é um movimento que não somente atua na comunidade Mossoró, como vem sendo o Mossoró. A coletividade vem promovendo uma ressignificação local, tornando-se uma ação política, tendo em vista a maneira como não só a comunidade Mossoró, mas periferias em geral são vistas e tratadas a partir da construção estereotipada do imaginário social. Pensam saber o que somos a partir do que a mídia dita, mas hoje, se você pesquisar “Arte Ocupa”, vai nos ver a partir do que nós mesmos dizemos: nos tornamos um ateliê a céu aberto.

As periferias estão repletas de vida e sonhos que se apresentam como alternativas dentro dos outros modos de dizer. Ao ouvir e estudar a história do nosso país através do olhar da arte, você percebe como as criações e ocupações artísticas — principalmente quando se trata do movimento hip hop — mudaram, dentro do possível, o sentido do termo “periferia” e foram de extrema importância para a construção do chamado “orgulho periférico”. Pergunte aos Racionais MC’s em 1993, pergunte ao Cidade de Deus em 2002. Através de ritmo e poesia, os Racionais trouxeram problemáticas da periferia, tratando de pautas como a miséria, a violência policial, o racismo e as dificuldades de oportunidade com que lida a população mais pobre e, logo, marginalizada do nosso país.

Como nos lembra Acauam Silvério de Oliveira, em O evangelho marginal dos Racionais MC’s

Racionais ajudou a fundar uma nova subjetividade, criando condições para a emergência do que ele [Tiaraju D’Andrea] define como “sujeito periférico”: o morador da periferia, que assume sua condição, tem orgulho desse lugar e age politicamente a partir dele. O termo “periferia” passaria a designar não apenas “pobreza e violência” — como antes ocorria no discurso oficial e acadêmico —, mas também “cultura potência”, confrontando a lógica genocida do Estado por meio da elaboração coletiva de outros modos de dizer. (…) Sua radicalidade e seu senso de missão (…) ajudaram a desenvolver um espaço discursivo em que os cidadãos periféricos puderam se apropriar de sua própria imagem, construindo para si uma voz que, no limite, mudaria a forma de enxergar e vivenciar a pobreza no Brasil.

Nos corpos periféricos colocados diante das múltiplas funções que devem exercer, pressionados pela pobreza, bombardeados de carências, que têm que pensar hoje no prato de amanhã, a arte entra que horas? Ela é vista como área privilegiada; entretanto, nós temos olhos de Gilberto Gil, sabemos que arte é igual a feijão com arroz, tem que estar no nosso prato todo dia. A arte é ordinária. A vida também deve sentir o cansaço de uma dança. E nessa criação no espaço-tempo de diversão e criatividade se constrói a autoestima. É onde as crianças se sentem escutadas, criativas, talentosas, felizes, belas, capazes e confiantes em si mesmas. Quando convidamos artistas para as ocupações, as crianças convivem com corpos semelhantes aos delas e os admiram. É um momento para se pensar “eu também posso”. Não é à toa que hoje tem criança aqui que sonha em ser artista. Nós pintamos juntos, conversamos, jogamos, criamos juntos. Não tem preço a felicidade de uma criança por ver sua pintura num varal em exposição ou numa parede de destaque na sua casa. Não tem preço ver a comunidade colorida, sentir que estamos morando num espaço mais bonito. É como no manifesto do coletivo Poro: é por uma cidade-festa, onde as ruas são para dançar, por uma relação próxima entre as pessoas e a cidade, pelo uso do espaço público como lugar de troca, festa, manifestação e encontros. Pelo fim da cidade-medo.

A gente sabe que criar e viver se interligam. Fayga Ostrower afirma que criar é poder dar forma a algo novo; criar é, portanto, a capacidade de compreender, e esta, por sua vez, de relacionar e significar — e assim o ser humano configura sua experiência do viver, lhe dando um significado. Dessa forma, a gente percebe que o ser humano cria não apenas porque quer ou porque gosta, e sim porque precisa. Fayga termina dizendo que o ser humano só pode crescer, enquanto ser humano, dando-se forma e, portanto, criando. Assim, a gente transforma, e quando transforma o nosso redor, não somente percebe as transformações, como sobretudo se percebe nelas. Essa escrita, por exemplo, está sendo construída por Gabriel Medeiros (12 anos) e Sarah Campelo (22 anos).

É importante que a gente acredite nas crianças e na juventude, perceba que elas — nós — são o agora. A nossa intenção, enquanto coletivo, é que as crianças e os jovens tenham cada vez mais voz nas ocupações. Isso é importante para que todos se sintam pertencentes ao Arte Ocupa. A partir do pertencimento é que a gente cria, e de criar as crianças entendem muito bem. Não é à toa que se chama cria-nça, né?

Eu, Gabriel, mais conhecido como Mosquitinho, vejo que tem muita diferença aqui no Mossoró depois do Arte Ocupa, porque antes aqui era uma comunidade muito triste, não tinha crianças reunidas para alegrar, e agora que o Arte Ocupa chegou na nossa comunidade, eu posso ver alegria e união entre a gente.

A gente percebe que ser pobre e ser rico tem diferença, que o rico tem uma escola boa, tem um parque perto de casa para brincar, se divertir, e o pobre não tem isso. Eu acho isso injusto com a gente. Por que o pobre não tem um parque perto de casa para brincar? Era para ser igual, porque eu achava que a gente era igual. Eu aprendi que todo mundo paga imposto, e a partir do momento que uma criança pega ou compra uma bala — de mascar — ela tem que pagar o valor da bala.

Nas palavras dos Racionais MC’s: Fé em Deus que ele é justo! Ei, irmão, nunca se esqueça / Na guarda, guerreiro, levanta a cabeça, truta / Onde estiver, seja lá como for / Tenha fé, porque até no lixão nasce flor.

O Estado renega corpos periféricos — que em sua grande maioria são corpos pretos —, deformando, reprimindo, manipulando nossas existências. Nos são negados espaços de lazer, nos é negado educação de qualidade, nos é negado saúde, nos é negado sensibilidade; concluímos, então, que nos é negada a vida. O amor é político.

E como mudamos, dentro dos nossos limites, essa realidade? Estamos envolvendo o terreno afetivo da comunidade. Em alguma página, Paulo Freire defende que na resposta dos oprimidos à violência dos opressores é que vamos encontrar um gesto de amor, mesmo que eles tenham o poder de definir a violência, mesmo que eles estejam no poder. Mossoró quer contar sua própria história no nosso tom, de se festejar por si e para si, vivendo os outros modos de dizer.

É como Sarah Campelo defende: se a gente não der uma resposta social para o nosso território, a nossa arte vai ser só uma moldura, e o diploma, um pedaço de papel.

O coletivo Arte Ocupa nasceu em 2021, criado pelo Marcelo Rufi e pela Sarah Campelo, e se tornou o que é hoje quando ambos decidiram fazer da rua o seu ateliê, pegaram seus materiais e sentaram na estação de Petrópolis. Como ninguém manda no que a rua diz, várias crianças e vários adolescentes foram se juntando ao redor. Assim, todo fim de semana eles se reuniram para pintar, desenhar, performar juntos, e toda vez as pessoas aproximavam. Isso foi se tornando frequente; quando viram tinham um nome, quando viram tinham uma página no Instagram, tinham logo e começaram a levar material não somente para si. Levantaram uma bandeira. Foi assim que quem frequentava a estação começou a se deparar com gente no chão fazendo arte, com barbante nos portes sendo varal de pinturas em exposição. E foi nessas vivências que a gente foi descendo o bairro e começando a fazer as ocupações no próprio Mossoró. A partir daí, percebemos o tesouro que é ter um espaço de permanência, um espaço onde você está presente para perceber as transformações e se perceber nelas. Não são apenas pessoas que aleatoriamente criam com a gente, hoje somos Ariel, Vinicius, Heitor, Miguel, Galinha, Gabriel, Thaís, Rafa, Vitor, Daniel, Karoline, Sofia, Tarcy, Julie, Isaac, Hugo, Mifó, Arão, Fabiano, Lulu, Jhonatan, Mosquitinho, Thallyson, Josi, Zé, Beatriz, Tatá, Sarah. E Mayara, Geci, Anderson e Marcelo, que de alguma forma também são Mossoró, como tantos outros. Somos uma família.

Taís Araújo um dia perguntou: “Como criar crianças dóceis num país ácido?”. Desde 2021 estamos desenvolvendo ações na área, e vejo como isso me levou a um senso de responsabilidade em relação ao meu território. Eu ia nas casas pedir aos pais que me deixassem levar as crianças para tomar a primeira dose da vacina contra covid-19, ir no Cidade das Crianças brincar. Comecei a ter uma base de respeito e noção de que, se eu estou alcançando e adentrando certos espaços, tenho que estar presente para ampliar esses espaços, para que a minha entrada não seja um ponto final, e sim um ponto de partida de sonhos contínuos. Eu tenho que devolver meus sonhos ao meu território.

Don L canta: “Isso num é sobre onde cê vem, é sobre onde cê quer chegar / E o que vai mudar pra quem de onde cê vem quando tiver lá”. É sobre isso. Quando puder sonhar, sonhe junto, porque assim a gente não ganha, a gente vence. Vamos nos eternizar nesta terra sangrenta. É um mundo que nos separa de nós, mas o nosso corpo é terra fértil, já estamos falando de sonhos pelas manhãs. E, sendo assim, se o Mossoró se tornou um ateliê a céu aberto, ocupamos as pontes para pintar, nossas telas são os muros das nossas próprias casas, são os muros que levantamos.

Acreditamos no direito à cidade. Cidade-festa. Ruas para dançar. Conheça a liberdade sem olhar no dicionário. Esqueça os carros. Isto não é uma arma. Tenha medo. Isto é arte. Tenha mais medo. E é assim que você nos vê. E é assim que a gente se vê no mundo. A gente pinta numa língua que já existia — só não entre a gente. A gente sonha em amarelo. Se Mossoró fosse uma cor, seria amarelo. Aqui as ideias são perigosas, estamos falando de amor. Ideias de amor são perigosas. Amor é fatal. Saber que a cidade é nossa é fatal. Saber o que é nosso por direito é fatal.

Uma vez a escritora Lorena Machado nos escreveu, através de uma troca na exposição da Galeria do Largo, o seguinte:

Sarah Campelo e Marcelo Rufi amam inquietamente, e por isso atravessam e percorrem as cidades-invisíveis para acender cores, formas, sensações, risos: manifestações. Impelidos pela necessidade de ampliar o sentir adentram espaços profundamente esquecidos: os corações que habitam e se movem nos bairros periféricos. O Arte Ocupa é como uma chave que abre nesses corações janelas-portas-ou-celas, muitas desconhecidas dos próprios corpos que os carregam. O material de que é feita a chave é, sem dúvida, o amor. O amor pela cidade em que habitam, o amor pelo sentir, o amor pela necessidade de expandir esse amar-através-da-arte. Uma atitude muito corajosa e transgressora nos dias atuais, onde impera, de todos os lados, os discursos agressivos e intolerantes. É o insólito que harmoniza o peso (libertador) do protesto com a leveza do fazer sentir amar.

Memórias de quem faz o Arte Ocupa

Gabriel Mosquitinho: Teve uma oficina de pintura, que é um evento organizado pela Sarah e pelo Marcelo. Nesse dia teve pintura na ponte, depois teve desfile e depois a Sarah e o tio Marcelo deram blusa do Arte Ocupa para todas as crianças que estavam participando. E nesse dia, na hora do desfile, eu caí no igarapé e cortei meu pé.

E em 2022 teve a Copa do Mundo, aí, pra não passar batido, a gente decidiu pintar a rua e fazer um campinho de futebol. Nesse mesmo dia de manhã, umas 10h, minha prima caiu de moto, mas ninguém se machucou. Aí a gente continuou pintando, e umas 10h45 a tinta que a gente tava pintando o campinho acabou, e a gente foi almoçar e umas 13h20 a gente voltou a pintar a rua. Nesse mesmo dia de madrugada a Sarah fez uma homenagem pra mim, Gabriel, mais conhecido como Mosquitinho.

Gabriel:
Na rua pintando o campinho, pintando a bandeira do Brasil, pintando a bandeira gay, pintando a camisa do Brasil.

Miguel:
Pintando a parede do Zé, jogando bola, a Karoline andando no igarapé e se sujando na guerra de tinta, pintando a cara, a Come Ovo amarrando linha.

Sofia:
Se melar de tinta pintando a parede do Zé, pintando a rua na Copa, a gente desfilando na ponte com roupa de pintura.

Thallyson:
Quando eu pintei as árvores e pintei a frase “Eu torço pela copa das árvores”.

Marcelo: Eu amo me lembrar do primeiro Arte Ocupa Pontes, em que perdi minha xuxinha de cabelo e fiquei comendo militos com o cabelo solto.

Se você pudesse ser qualquer coisa no mundo, o que você seria?

Ariel (7 anos): um cachorro
Fabiano (14 anos): barbeiro
Gabriel Mosquitinho (12 anos): o céu
Sarah (22 anos): um pássaro condor ou um urubu
Vinicius (12 anos): um pitbull
Hugo (11 anos): jogador de futebol
Karoline (11 anos): enfermeira
Josi (32 anos): policial
Miguel (11 anos): um MC adulto
Heitor (4 anos): pintor
Arão (5 anos): dentista
Mifó (5 anos): um pedaço de isopor
Isaac (7 anos): o Homem-Aranha
Gabriel (13 anos): o Superman
Thallyson (12 anos): técnico do Vasco

E você que está nos lendo agora, o que você seria se pudesse ser qualquer coisa no mundo?

Ao entrar aqui, tenha cuidado. Tem sonhos na rua. Tem crianças na rua. Nós devemos pedir perdão às crianças, principalmente àquela que já fomos um dia. Cuidar da infância é o melhor investimento que se pode fazer.

Bem-vindo a Mossoró.