Aeroporto de Guarulhos, voo às dez da noite para Sidney, na Austrália. Carla chega às 19h e faz check-in. Compra uma pizza e uma Coca-Cola na Pizza Hut antes de embarcar. Poltrona apertada. Começa o voo animada para assistir a um filme que ainda está no cinema. Comida de avião. Toma um vinho, dorme um pouco. Acorda, tenta ver um documentário que sempre quis ver, acha chato e desiste depois dos primeiros 20 minutos. Parte para uma sequência de capítulos de séries antigas e vários filmes de super-heróis. Vinte e quatro horas depois, Sidney. Táxi, hotel com check-in ainda bloqueado pelo horário. Carla sai pelas ruas do bairro em busca de algum restaurante para matar a fome e o tempo. Acaba no McDonald’s.
Vencer o poder sedutor do conforto e do conhecido é difícil. Você pode viajar fisicamente para o outro lado do mundo e não sair do lugar. Talvez estejamos nos esquecendo disso quando nos separamos da tecnologia e a culpamos por nos prender em territórios conhecidos. Está na pauta do dia: algoritmos perversos estão nos privando de relações com a diversidade de ideias e pensamentos. Como vencê-los? Em tempos de crise, de golpe, de vigilância, de textões no Facebook, o tema ganha importância ímpar. Eli Pariser, autor americano do livro O filtro invisível, já em 2011 nos alertava que a internet deveria ser uma ferramenta que nos conecta ao mundo, mas que, ao contrário disso, tem nos limitado somente a nossos iguais. Algoritmos nos alimentam apenas com o que queremos e não com o que precisamos. Nossas curtidas informam nossos desejos, mesmo contra nossas vontades (idealizadas).
Até onde sabemos, tecnologias disponíveis na Terra ao longo da história foram criadas por seres humanos. Parece óbvio, mas é preciso dizê-lo: as tecnologias não são recursos alienígenas querendo nos controlar. Portanto, a discussão de seus usos e efeitos deve ser feita em torno de humanos, que vivem em sociedade, que produzem e reproduzem cultura. Hoje vivemos e somos parte do sistema capitalista. É esse sistema que organiza e rege nossas vidas. Produção, compra e venda de bens de consumo são pressupostos de nossas relações. O que nos cerca são produtos desenhados para nos fazer gastar dinheiro e, assim, fazer a roda girar. Com os algoritmos que filtram o mundo até que ele chegue em nossas telas de computador e celular não é diferente. Quanto mais “curtimos”, mais geramos audiência e mais valiosos tornamos nossos cliques. Dessa maneira, filtros são pensados para nos agradar e nos aproximar daquilo que queremos.
Questionar a validade e a pertinência desses algoritmos é olhar para nós mesmos com uma desconcertante pergunta: será que eles não revelam um de nossos segredos mais íntimos, nosso lado mais privado, o da mediocridade, da preguiça, do vício no prazer e no conforto? Convivem em cada um de nós idealizações em choque com a nossa realidade. Somos seres sociais, que se desenvolvem enquanto sujeitos a partir das relações que estabelecem uns com os outros. Como teorizou Lev Vygotsky, pensador russo influente no universo da educação e da psicologia, “a natureza psíquica do homem vem a ser o conjunto de relações sociais transladadas ao interior e convertidas em funções da personalidade e em formas de sua estrutura”. Sabemos que o mundo é grande e que nele vivem 7 bilhões de oportunidades para nossa própria elaboração. Mas até que ponto nos movimentamos em busca do desfrute dessa grandiosidade?
Somos filhos da modernidade. De um tempo histórico marcado pelo ideal de liberdade. Em teoria, somos responsáveis pela condução de nossas vidas. Para isso, usamos nossas crenças e valores como mapas. No entanto, em contato com o diverso e o desconhecido, as linhas retas desaparecem em meio a rotas que nos confortam por já estarem pré-traçadas. Lidar com o diferente exige esforço. Repensar, debater, fazer novos desenhos: nada disso é fácil. Conversas de bar com aqueles que compartilham conosco os mesmos mapas é o equivalente a uma navegação em águas tranquilas. Assim como ver posts em nosso feed de notícias convidativos para nossos likes. Quando o Google esconde o que não nos interessa, quando o Facebook nos oferece um botão para “deixar de seguir”, eles estão apenas facilitando algo que é mais difícil de fazer ao vivo, mas não impossível: fugir do outro, do realmente outro!
Crises são momentos de incertezas. Especialmente nesses momentos nos abraçamos ao que nos parece sólido e confiável. Reforçamos nossas crenças e nos fechamos para tudo que pode nos tirar de nosso oásis de segurança. Os opostos ficam mais claros, os unfollows mais frequentes. Se os veículos de massa já foram os grandes culpados pela diminuição do mundo, hoje os veículos digitais, com que nos relacionamos mais participativamente, compartilham a culpa por nos provocarem overdoses de conforto. E nós, que papel temos nesse processo? Mudamos de canal? Paramos com as faxinas de redes sociais? Ouvimos nossos amigos na mesa de bar? Terminamos de ler uma matéria com a qual não concordamos?
Vivemos no Brasil imersos no mito da diversidade, acreditamos que amamos o diferente. Temos a mestiçagem como um dos traços mais marcantes de nossa cultura. Gilberto Freyre e sua tese de “democracia racial” foi um dos condutores da formulação de nossa atual autoimagem, nos levando à crença de que somos todos irmãos em terras tupiniquins. Porém, arcabouços tão profundos de pensamento parecem agora estar sob revisão. Nos últimos anos, a começar por 2013, emergiu a poeira que estava escondida debaixo do tapete: em um país com um dos piores índices de desigualdade social do mundo, essa pretensa irmandade não teria como ser verdadeira. O racismo, o machismo e o abismo entre pobres e ricos provocam, sim, separações enormes entre os 200 milhões que aqui vivem. A internet e seus meios descentralizados de distribuição de informações, de um lado, tem servido para que aqueles que não tinham voz agora tenham, para que possam narrar suas histórias e dores. Mas, por outro lado, na mesma internet, cada vez mais existem mecanismos para que contatos desagradáveis com a realidade continuem a ser evitados. Talvez essa seja mais uma demonstração de que o problema está em nós e que não seremos resgatados pelas tecnologias de salvação.
Oswald de Andrade um dia proclamou: “só me interessa o que é do outro”. Em seu manifesto antropofágico, nos desafiou a comermos o outro para nos transformarmos a partir de quem devoramos. A criatividade, o poder de invenção e de evolução, que fazem da vida humana efervescente, dependem do esforço em busca da alteridade. Para isso, temos que trazer para a prática nossas idealizações de quem podemos ser: pessoas abertas e interessadas no diferente. Saber que suas curtidas alimentam algoritmos que vão jogar contra você nesse processo já é um primeiro passo. O segundo é parar de fazer cliques irresponsáveis. Diversificar pessoas, fontes, lugares, assuntos, livros e filmes, entendendo que o mundo físico e o virtual não se separam quando os assuntos são bolhas e polarizações. Para isso temos que criar espaço para desagrados, para uma vida em sociedade cada vez mais “chata” que não nos aceitará preguiçosos, presos em ilhas, quando existem tantas oportunidades para que possamos realmente explorar o que o mundo todo tem a nos oferecer.
Labirinto sem mapa
por Débora Emm