#3MedoArteArtes Visuais

Eu preciso destas palavras escritas

Um olhar sobre os bordados de
Arthur Bispo do Rosário

“Um dia eu simplesmente apareci!” Era assim que Artur Bispo do Rosário, o Bispo, costumava se apresentar. Nasceu em Sergipe, em uma cidade muito pequena chamada Japaratuba, por volta de 1910. Não se sabe, ao certo, porque em cada registro encontrado da vida dele há uma data: na Marinha — onde ele trabalhou de 1915 a 1933 e lutou boxe; na Light — onde trabalhou de 1935 a 1936; e na Colônia Juliano Moreira, onde ele ficou internado até morrer.

Na Light, era lavador de bondes e ônibus. Em 1936, sofreu um acidente em que teve seu pé esquerdo esmagado e foi obrigado a assinar um documento em que assumia, ele, toda a culpa pelo acidente. Mesmo assim, foi afastado por desacatar ordens superiores e, logo depois, dispensado completamente.

Esse acidente lhe rendeu uma causa trabalhista, e foi assim que o artista conheceu o advogado Humberto Leone, em 1937. Bispo e Leone se tornaram muito amigos, tanto que Leone o acolheu em sua própria casa, na Rua São Clemente, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Na casa, Bispo tinha um papel de “faz-tudo” e, mesmo depois que Humberto Leone morreu, ele continuou vivendo com a família Leone. Foi naquela casa que o artista começou a produzir suas obras e a formar seu santuário, e, também, foi lá que teve sua primeira visão. Era 22 de dezembro, quase véspera do Natal de 1938. Bispo saiu de casa se dizendo escoltado por sete anjos azuis. Dizia também carregar nas costas uma cruz, também azul. Dirigiu-se à Igreja da Candelária, a essa altura, sendo seguido pelos Leone e, quando chegou à Igreja, pediu para falar com o padre e disse “Vim me apresentar”.

Bispo se considerava um servo de Deus, um escravo obrigado a obedecer a uma voz que ouvia e que mandava executar sua missão de se retratar, inventariar e catalogar o mundo para Deus — seu Manto de apresentação é uma prova desse inventário para Deus. Nele, Bispo bordava o nome das pessoas que para ele, entrariam no céu, no dia do Juízo Final. Presentes em algumas de suas obras, as estrelas seriam a representação de forças que agem harmonicamente a serviço de Deus.

Aura Azul

Após ter sua primeira visão, Bispo foi internado com o diagnóstico de esquizofrenia paranoide: primeiro, no Hospital dos Enfermos, na Praia Vermelha, e logo depois na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá — “o lugar dos loucos”. Ali era respeitado por todos, de detentos a guardas. Bispo, ex-lutador de boxe, ajudava a colocar ordem no lugar usando a força física. Conquistou privilégios diferenciados: passear fora da Colônia e decidir se queria ou não comer. Mas o maior deles era o fato de possuir uma cela individual. Mais do que uma cela, o lugar era o santuário onde ele confeccionava suas obras e ao qual só permitia a entrada das pessoas que adivinhassem a cor de sua aura: azul. Quem errasse a resposta não entrava em seu mundo.

Musa

Foi na Colônia Juliano Moreira que Bispo viu Rosângela Maria pela primeira vez. Aos 23 anos, a estudante e estagiária de psicologia se tornou, além de analista, grande amiga e musa de Bispo, um homem que já beirava seus 70 anos, que dedicou a ela muitas de suas obras. Ele via em Rosângela “uma santinha”, a idolatrava como se fosse a Virgem Maria, além de se colocar muitas vezes no lugar de Jesus Cristo. Dela costumava escrever.

ROSÂNGELA MARIA
DIRETORA DE TUDO
EU TENHO

Por causa dessa idolatria e dessa forte amizade, um tanto exagerada e com aspectos de possessividade, Rosângela chegou a se afastar e só voltou quando ele chamou por ela depois que sofreu seu primeiro ataque cardíaco.

Bispo ficou internado algumas semanas, os médicos chegaram a dizer que ele precisaria parar de trabalhar e que sua cela precisava ser limpa, por causa da poeira acumulada, já que só ele podia mexer em suas obras. Ele gritou e se negou a parar de trabalhar, disse que fazia isso não porque queria, mas porque era obrigado (de novo disse que ouvia a tal voz que mandava nele) e que nada mudaria de lugar em sua cela. Mais uma vez, sua vontade foi respeitada dentro da Colônia, ninguém mexeu em sua cela e ele voltou a trabalhar nela.

O homem de uma só religião

A vida de Bispo do Rosário é marcada pela forte presença do sentimento de religiosidade. Esta, e não sua doença, é a questão central para a análise de suas obras. A ideia de sagrado e da religião sempre estiveram presentes em sua vida, que era cercada de inúmeros rituais criados e encenados por ele próprio.

Essas questões, entre mitos e ritos, nos remetem a procedimentos próprios dos homens das sociedades arcaicas, que seguiram modelos de mitos exemplares segundo suas crenças e religiões. A diferença é que Bispo cria seu próprio mito exemplar. Em ambos os casos, há uma paralisação do tempo real e a inserção de um tempo sagrado. A missa, independentemente de sua duração, termina somente quando o padre dá sua bênção final; da mesma forma, ao se trancar em sua cela para criar, Bispo só saía de lá quando dava por acabada a obra. Muitas vezes, perdeu tempo de quantos dias ou semanas se passaram. Outro ponto é a questão do espaço, determinado, nos dois casos, para que o ritual aconteça. Em Bispo, só os eleitos podiam ter acesso ao seu universo particular.

Mesmo com tantas semelhanças na forma de vivenciar sua religiosidade, existe uma grande diferença entre Bispo e os homens das sociedades arcaicas: Bispo produz arte através de seus rituais.

Com isso, é possível formar uma linha de pensamento para tentar mais uma vez desvendar o universo de Bispo, que é a soma de três vias: a religião católica, os registros do cotidiano — através dos materiais coletados no cotidiano do artista e manchetes de jornais que viram substrato para suas obras — e as sociedades arcaicas. Bispo realiza uma miscelânea dessas três vias, resultando em uma quarta: ele faz sua própria religião — que é baseada em preceitos da religião católica, matéria-prima de composição das suas obras, dos materiais do uso cotidiano e de como os ritualiza como os homens das sociedades arcaicas, com o diferencial de que produz arte.

Sim, Bispo criou sua própria religião e esta se tornou a religião de um homem só.

A vida e a obra

Não dá para separar o homem do artista. Bispo não apenas reproduz a realidade, mesmo que sua intenção seja inventariar o mundo para Deus — ele produz arte, carregada de mitos e ritos também presentes nas sociedades arcaicas, mas com uma identidade própria.

Muitas passagens de sua vida estão direta e literalmente ligadas ou representadas em sua obra. Símbolos dos locais onde trabalhou, como a Marinha, o endereço onde morou com a família Leone, o sentimento da religiosidade e da justiça que o acompanham por toda a vida.