Existem ao menos dois livros fundamentais sobre o homem renascentista: O Príncipe, de Maquiavel, e O Cortesão, de Baldassare Castiglione. Maquiavel escreveu um tratado político – sobre como o homem público deve agir. Castiglione escreveu sobre o homem em sua vida privada: O Cortesão é um manual sobre como deve ser e se comportar um perfeito homem da corte renascentista. As articulações políticas de qualquer câmara de vereadores do interior do Brasil hoje bastam para provar que Maquiavel estava certo – e que, mesmo sem ser amplamente lido, foi totalmente assimilado. O príncipe inaugurou o político moderno, a realpolitik. O tratado de Castiglione, em comparação, é pouco lido, quase esquecido, e praticamente não se fala mais em sprezzatura, a principal característica exigida do cortesão ideal.
Sprezzatura é o oposto de afetação: é uma espécie de displicência calculada, que “demonstre que o que se faz e o que se diz é feito sem esforço e quase sem pensar”. O próprio livro de Castiglione, estruturado em forma de diálogo e escrito em lombardo (e não em latim ou toscano, que seriam opções mais, digamos, eruditas), respeita esse princípio. O Cortesão se passa em quatro noites, em 1506, no palácio do Duque de Urbino – um dos mais bonitos da Itália –, em que membros da mais alta aristocracia italiana estavam hospedados para receber o papa, que deixou os aposentos no dia anterior. O Duque, que tem saúde frágil, precisa dormir depois do jantar, enquanto sua mulher, Elisabetta Gonzaga, entretém as visitas com jogos de conversação. O livro de Castiglione – que serviu à corte de Urbino – é a reprodução de uma possível conversa entre essas pessoas sobre as características exigidas ao cortesão perfeito. A obra foi amplamente traduzida na época – inclusive na Inglaterra – e, em grande medida, fundou a nossa noção de homem educado.
E a primeira recomendação é esta: ter uma certa leveza, uma delicadeza natural nos gestos, na conversação, na forma de se vestir, que faça com que o esforço desapareça mesmo na execução das tarefas mais exigentes. Porque o esforço – a aparência de esforço, na verdade – é o maior inimigo da graça. Não há nada mais entediante (nem mais burro, aliás) do que um discurso muito pensado para parecer inteligente – em que o excesso de cálculo aparece na escolha de palavras difíceis, raras. Esse estudo exagerado, quando é visível, compromete a sensação de naturalidade: como no caso do dom Pierpaolo, narrado por dom Roberto de Bari, que dança “com aqueles saltaricos e as pernas esticadas nas pontas dos pés, sem mexer a cabeça, como se tudo fosse de madeira, com tanta atenção que parece que vai numerando os passos. Quem é tão cego que não veja nisso a desgraciosidade da afetação?”.
Sprezzatura é, portanto, uma espécie de técnica de esconder a técnica – e afastar dos modos do homem (e da mulher, a quem a parte final do livro é dedicada) tudo que seja pedante, pomposo, pensado. É a busca por um equilíbrio natural e delicado em tudo que se faz. E o cortesão de Castiglione deve fazer praticamente de tudo: enfrentar guerras; estar familiarizado com os grandes livros; conhecer música e tocar um instrumento; caçar; conversar agradavelmente; desenhar e pintar; se vestir modestamente, mas com cores, listras e bons tecidos; cultivar os amigos; jogar os jogos da corte; etc. Cabe ao cortesão, aliás, tudo isso fazer com competência, mesmo que não perfeitamente: lembrando que o mais importante é que tudo pareça sempre improvisado, que seja com a “pureza displicente” que encontramos, não por acaso, nos gestos dos personagens do Casamento da Virgem de Rafael – provavelmente o mais fino, mais equilibrado, mais elegante pintor renascentista.
Rafael Sanzio nasceu em Urbino, e o retrato que Rafael pintou de Castiglione talvez seja o melhor retrato seu a que temos acesso hoje. Vasari, aliás, encerra a sua biografia de Rafael com um triste poema que Castiglione escreveu sobre a morte do pintor, que acaba assim: “E a morte se indignou porque [tu] podias devolver a alma aos mortos e porque tu, desprezando sua lei, reparavas aquilo que o longo passar do tempo abolira. Assim, mísero, vencida tua primeira juventude, caíste, lembrando-nos de que todos nós e tudo o que é nosso haveremos de morrer”. Haveremos, mas, enquanto isso, temos obrigação de preservar para sempre, se não os homens, a obra e o espírito de alguns deles.