Comecei com as cartas logo que me alfabetizei, aos sete anos, em 1969. Mamãe me ditava o que ela precisava dizer para o José Maria e, depois, colocava no correio. Suas cartas eram curtas, eu me lembro. E falavam, em primeiro lugar, de saudade. Diziam que, desde que ela o vira pela última vez… – e, aí, eu escrevia como escutava, em maiúscula: “Deus que te vi pela última vez…”
Em janeiro deste ano, comecei a fazer apresentações de minhas músicas nas casas dos amigos. Eu ofereço o show em suas salas e, depois, passo o chapéu. Nós chamamos essa série de shows de De Casa em Casa. Quando fizemos o De Casa em Casa no Márcio, na hora em que estávamos saindo, Edil disse que tinha uma surpresa. No caminho, acabei descobrindo-a: entre uma música e outra, ele iria ler as cartas que lhe mandei no fim dos anos 80 e início de 90. Eu não tinha ideia do que elas eram, mas, pelo entusiasmo dele em trazê-las para as músicas, pedi que já abrisse o show com uma.
Fiquei com um pouco de vergonha, achando uma bobagem todo aquele assunto que eu criava nelas – ocos, só pelo prazer de escrever e, então, perder um pouco de minha tristeza jovem. Mas o Edil disse que eram cartas de poeta e leu de um modo muito emocionado, bonito, porque ele é um poeta, e leu poeticamente, e chorou, porque não há outro modo de um poeta ler uma carta. Todos os amigos que escutaram a leitura acharam minhas cartas muito bonitas. E eu, mesmo assim, continuei não conseguindo ter ideia do que elas eram, mas também as achei bonitas, assim, com eles, no fluxo, na vibe.
Depois, em mais outros dois De Casa em Casa, Edil levou as cartas para ler, e comecei a perder aquela primeira impressão de que eram muito bobas, muito nada a ver. Comecei a sentir o quanto de verdade tinha em toda a fantasia que eu desenvolvia nelas. E entendi melhor por que a Vilma, naquele dia, na sala do Márcio, depois do show, depois da primeira leitura delas pelo Edil, veio me dizer que eu era um cara de fronteira e que eu só não enlouquecia porque escrevia cartas, fazia músicas e era artista.
Eu escrevo cartas desde menino, com os assuntos de mamãe, mas, quando fiquei adolescente e nos mudamos para Niterói, seus assuntos, além do que escrevia para seus irmãos, começaram a ser também os meus assuntos, para uma amiga de ginásio que tinha ficado em Cachoeiro. Depois, quando a nossa amizade acabou por conta da distância, eu escrevia para os amigos adolescentes daqui mesmo de Niterói. Quando me mudei para uma cidade do interior do estado do Rio de Janeiro, já um rapaz adulto, elas se intensificaram. As do Edil são dessa época, enquanto ele vagava por cidades do interior de Minas Gerais.
Escrevi para outros amigos, porque nós gostávamos desse negócio de manuscrever no papel, colocar no correio, esperar pelas respostas que vinham pelo carteiro. Era um entusiasmo isso. E o Edil ter levado suas-minhas cartas para ler nos shows me fez ver que elas foram, algumas vezes, o embrião de alguma música, um tema que, depois, virou música, como o tema de “Poltrona”, por exemplo, do meu disco Antigo (2013). Também me fez ver que, dentro dos limites do que me aconteceu na vida, elas também são o embrião dos livros que escrevi. No fim, os livros são como elas. Vou inventando o que dizer sobre mim e, aí, eles vão tomando esse aspecto meio ficção, meio verdade, por conta da fantasia com que me deixo envolver para contar uma coisa que é minha.
Penso que eu tenha herdado isso de mamãe. Ela, nas cartas para o Edil, está quase sempre presente, assim como nos livros e músicas. Eu adorei saber de uma carta que fala dos bolinhos que ela fazia e que comíamos na cozinha, fritos na hora. Nela, falo do meu desejo de que comer aqueles bolinhos continuasse como aquela lembrança que eu tinha, de olhar para as rolinhas ciscando a palha de arroz, quando eu não era nem mesmo menino, ainda bebê, e o sol era um sol branco, azul e dourado, inclinado sobre elas, as rolinhas. Só que o desejo não se realizou, não fosse a carta. As rolinhas estão até hoje pastando sob o sol branco, azul e dourado. Os bolinhos só estão na carta.
Cartas para o Edil
por Renato Oliveira