Conferi se comeram legumes. Orgânicos. Para evitar agrotóxicos. Que perigo. Passei filtro neles antes da praia. O buraco da camada de ozônio só cresce, li no jornal. Protetor é para evitar câncer; achei uma camiseta que tem FPS 50, comprei logo duas. Coloquei rede na janela, para evitar que caiam lá embaixo. “Tears in heaven” foi a canção que Eric Clapton compôs para o filho que caiu da janela. Embalou minha adolescência. Enquanto eu dançava bailinho e começava a minha juventude, essa era a trilha sonora das festas. Ingenuidade minha, nem percebia do que se tratava. Estava tão distraída com a vida que me convidava para dançar, deslumbrada, que quase esquecia que também existe esse negócio chamado morte.
A empresa que contratei para a rede se chamava alguma coisa Angel. Tem que ter. Eu que não fico sem esse anjo da guarda chamado rede de proteção. Começou a me dar arrepio ouvir essa música no rádio depois que eu pari. De vez em quando, ela aparece. Sempre me emociona. Como esse homem conseguiu, meu Deus, cantar outra vez? É possível voltar a ter voz com um impacto desse na vida? Não sei. Não quero saber. Sempre tento mudar de estação. Mas a música é forte demais e permanece. É que a melodia da morte nunca deixa de estar à espreita, como uma música que fica sempre de fundo.
Sei que os cobri à noite para evitar pneumonia. Fechei a janela por causa da ventania. Saí correndo no meio da madrugada para acolher um filho que teve pesadelo. Levantei com tanta rapidez que travei o pescoço. Está tudo bem. Era só um sonho ruim. Voltemos a nos distrair com o cronograma do dia seguinte. Voltamos à programação normal da vida.
Dei também a vacina de sarampo, a terceira dose, já que há uma epidemia voltando, minha sogra falou. Própolis garante uma melhora da imunidade, assim eu li numa notícia do mercado de comidas naturais da esquina, e minha amiga confirmou. Lá mesmo onde compro macarrão integral para evitar a farinha branca, que, pelo que dizem, é um veneno. Não custa tentar. Eu estava tão atrapalhada essa semana que nem fiz a inalação direito na minha filha mais nova, conforme o pediatra orientou, para que o tempo seco não lhe cause alergias respiratórias.
Quando teve a epidemia de Zika, comprei mais de dez repelentes de uma só vez. Dez Exposis, que era o único eficaz para dengue, tal qual li numa matéria da revista.
Fui também a primeira da fila da vacina de gripe no Cedip para evitar um surto de H1N1 que acabou de ocorrer. Era 7:30 da manhã. Estavam eu, minha mãe de 80 anos, as crianças e meu marido. Por que a pressa em plena segunda? Meu marido me perguntava. Eu não respondi na hora, pois estava preocupada com onde eu tinha guardado o papel do manobrista, como sempre, mas a verdade é que eu tenho pressa em fugir da morte, por isso corro.
Eu tomo banho depois dos velórios, tiro o sapato. Quero tapeá-la. Quero ela longe da minha casa. Quero combatê-la, embora eu saiba que eu estou fadada a perder essa luta no fim do meu jogo. Eu tenho certeza que ela é esperta, entra no buraco da fechadura, pela janela, pela fresta da porta.
Na semana passada, outro susto: chegamos a tempo no pronto-socorro no meio de uma crise de laringite do meu mais velho. Eu achei que ele ia parar de respirar. Ufa. Deram remédio, voltamos para casa. Dormi calma. O fantasma daquele dia tinha dormido. E eu dormi, triunfante: enganei você, velha senhora. Não foi dessa vez que a morte nos encontrou. Consegui me esconder direitinho.
Dessa vez, a ambulância dobrou a esquina. Fiz um sinal da cruz quando ela passou. Que cheguem a tempo na casa do doente, pensei solidária. Ao mesmo tempo que comemorei, egoísta, que dessa vez não foi comigo. Entrei no supermercado, atendi o celular. Não é comigo dessa vez. Posso comprar carne para o almoço com calma. Para ela, não tem vaga na porta de casa. Hoje não.
Eu não vou conseguir proteger vocês para sempre, meus filhos. Mas eu queria. Então, enquanto eu posso, faço esses paranauês, que, no fundo, não adiantam tanto, estão além do meu controle, mas me dão a ilusão de que nada de mal vai chegar perto de vocês. Eu queria ter a certeza que ninguém vai quebrar o coração de vocês. Que vocês nunca vão ver no canto de uma festa o amor de vocês gargalhando e jogando a cabeça para trás com outro alguém. Queria também que vocês nunca fossem traídos, maltratados, excluídos. Que nunca sofressem um assalto. Um assédio.
Que nunca recebessem a notícia de que alguém que vocês amam está morrendo.
Enquanto eu puder, eu vou lutar para enganar essa nossa inimiga. Vou viver para tentar tapear a velha senhora. Tamparei os ouvidos para não ouvir seu canto, tal qual Ulisses fez com suas sereias. E nessa tentativa ilusória de drible, vou me movimentando. Construo muros, mudo de casa, trabalho, produzo, transito, sem me paralisar. Fecho as janelas. Faço inalação. Blindo o carro, se preciso for. E amo vocês com mais força. Tenho pressa, tenho urgência. Ser a mãe de vocês me criou a maior de todas ilusões: a de que eu posso tentar ser super-heroína. Foram vocês que me ofereceram essa coragem. São vocês meu amuleto. E eu sei que, dentro vocês, viverei para sempre. Serei imortal, finalmente, nessas memórias que construí.
Essa luta é o meu único caminho possível. Embora eu saiba que a maratona termina de frente com essa tal bandida. E que ela vai roubar minha tão suada medalha.
Por isso, corro demais. Ainda.