#32TravessiaCulturaSociedade

Amyr Klink: “Eu venho da África”

por Amyr Klink


editor convidado da Amarello Travessia

“Eu venho da África”. Muito planejamento foi necessário para dar essa resposta à curiosa pergunta das primeiras pessoas com as quais tive contato ao chegar no Brasil: dois pescadores que se aproximaram de mim em suas embarcações, movidos pela curiosidade, espantados ao avistar um barco sem vela ou motor surgir do alto mar em direção à costa brasileira.

Levei 100 dias para realizar a travessia do Atlântico Sul, em 1984, saindo de Lüderitz, no Sul da África, até a Bahia. Lembro como se fosse hoje aquela sensação de que essa viagem tinha tudo para dar errado. O frio constante era um problema, a engenharia marítima inédita era um problema, a logística com a comida era um problema. Antes de mim, dois africanos se aventuraram no mesmo percurso, e nenhum sobreviveu. Outro problema. Um sinal de que se está em um desafio é quando os medos e as dúvidas não diminuem à medida que você planeja, mas aumentam. No entanto, somente tamanha insegurança faz com que se planeje uma viagem até a exaustão, e isso faz toda a diferença. Os preparativos com os quais precisei me preocupar eram tantos que não houve tempo para pensar no que eu diria ao chegar – se caso chegasse. acho que as pessoas esperavam que eu tirasse uma bandeira do Brasil como a do Ayrton Senna e tivesse uma frase como a do Neil Armstrong. Mas não, a minha bandeira era minúscula, pouco maior que a palma de uma mão, e a primeira frase que me ocorreu veio sem qualquer preparação, em resposta à impensável pergunta dos pescadores baianos que me abordaram: “Como foi a pescaria?”, eles queriam saber. “Eu venho da África”, respondi.

Experiências no mar têm duas características: são efêmeras e intensas. Algo como a vida. Ao contrário do que esperava, senti uma tristeza ao avistar a praia da Bahia, porque sabia que o percurso estava terminando. Eu havia remado no mínimo 10 horas por dia durante mais de três meses, e agora percebia que não queria que isso simplesmente chegasse ao fim. Então me aproximei da costa e decidi que não iria desembarcar, e o mais difícil foi comunicar isso aos que me esperavam ali, ansiosos. Era como se estivéssemos prestes a desfrutar de coisas diferentes. Eles queriam o feito, exaltar a conquista da travessia; eu queria prolongar o prazer que o percurso me transmitia. Teria sido mais fácil explicar a resistência em descer caso as pessoas pudessem escutar o mesmo que eu naquele momento: o som do vento batendo nos coqueiros. O mar ensina a ficar atento aos sinais. Por isso, não tive dúvida quando atraquei na Praia da Espera. Ancorei e esperei por seis horas antes de desembarcar.

Eu nunca imaginei ou mesmo desejei uma chegada épica. Mas quando as pessoas entenderam do que se tratava, elas resolveram que dariam essa dimensão ao meu percurso. O que é ótimo, claro, mas também sinaliza uma necessidade visível do nosso tempo: a de criar heróis. É compreensível nos depararmos com essas figuras durante a infância, mas, na vida real, em sociedade, cada um de nós deveria ser herói. E isso não é complexo; basta que assumamos as nossas responsabilidades por inteiro. Vejo que, por vezes, perdemos a coragem de fazer e de realizar. Transferimos nosso desejo de viver para os outros. Os outros podem; eu, não. O mundo está em um momento tão delicado e confuso que somente poderemos modificá-lo se cada um de nós assumir um protagonismo verdadeiro.

As pessoas geralmente pensam que a minha grande companhia nessa viagem foi a solidão. Errado. Quando você precisa remar o dia todo, tudo o que não acontece é sentir-se sozinho. Minha maior companhia, na verdade, foi a ignorância. Mas não a ignorância de não querer enxergar – essa é fatal. Minha ignorância era consciente, um respeito diante do desconhecido. Eu sabia que não poderia prever tudo e, por isso mesmo, me preparei ao máximo para o que pudesse acontecer.

Nesse aspecto, vejo que a tecnologia nos auxilia muito. Eu não tinha tecnologia em 1984, e a bússola não me servia, então aprendi astronomia para me guiar pelos astros. Tive de aceitar o desconhecido e minha insignificância para atingir meu objetivo. Essa ignorância me salvou. A tecnologia é uma revolução incrível, sem dúvida, mas ela também acomoda e mata. A era da hiperconectividade nos colocou em um estado de velocidade sem precedentes, com o qual muitas vezes não sabemos lidar. Nele, acabamos facilmente descuidados e acomodados com a realidade. A facilidade com que obtemos as coisas nos faz abrir mão de uma série de habilidades. Todo conhecimento é precioso de alguma forma. Deixá-lo a cargo de outro, seja pessoa, aplicativo ou robô, nos priva do que é mais valioso no ser humano: a autonomia. A tecnologia precisa ser nossa aliada, porque, se estamos no caminho certo, ela nos auxilia enormemente e expande o percurso. Mas, se estamos no errado, ela nos leva cada vez para mais longe da superfície.

Vejo que estamos cada vez mais preocupados com o destino, com onde vamos chegar e o que vamos alcançar com isso, e, assim, esquecemos do principal – a travessia. O percurso é o que nos leva de um lado ao outro da experiência. Se nos desconectamos dele, dos seus perigos e mistérios, acabamos desconectados, também, de sua beleza. Aprendi que, quando focamos unicamente o destino, a chegada pode ser frustrante, e aí é muito fácil nos decepcionarmos com a vida e reclamarmos de tudo. É nos momentos de dificuldade que a criatividade aflora e provamos poder nos superar.

O mar também me permitiu repensar conceitos importantes, como o de liberdade. Penso que a ideia de liberdade dos dias de hoje, no fundo, pode ser uma noção falsa ou impossível. A liberdade que me interessa é muito menos aquela que se parece com uma vastidão de água ilimitada do que aquela que me permite vislumbrar claramente as fronteiras. Porque, quando vivemos em sociedade e eu enxergo apenas a mim, penso somente nos meus interesses, isso é sinal de que eu não estou vendo bem. Isso significa que sou míope. Por outro lado, se reconheço os meus limites, seja a presença de um vizinho, a existência de um pensamento diferente do meu ou a importância do nosso ecossistema, então eu posso existir não sem conflito, mas em diálogo. O conflito existe desde sempre, e o caminho não é tentar erradicá-lo em um instante, mas conciliá-lo constantemente. O maior desafio no mar era estar aberto ao acaso e corrigir as pequenas derrotas do cotidiano. Precisei aceitar muitas vezes que, em alguns dias, eu remava sem saber se estava avançando ou retrocedendo, e isso não poderia ser um problema – caso contrário, eu desistiria. Estar aberto ao inesperado é um aprendizado. as derrotas diárias nos ensinam muito e precisam ser assimiladas continuamente. E se elas parecem complexas e nos tomam muito tempo, nem por isso deixaremos de remar. Porque esse é o percurso, e é para ele que estamos aqui – para apreciar o som do vento batendo nos coqueiros.


Texto originalmente publicado na edição Travessia

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