Antonio Obá retrata Chico Rei
Reprodução: Filipe Berndt
ArteArtes Visuais

Enciclopédia Negra

Pinacoteca de São Paulo inaugura exposição destinada a revisar a narrativa de artistas colocados à margem da história

Em cartaz a partir do início de maio, Enciclopédia Negra marca um momento importante na trajetória da Pinacoteca de São Paulo. Inspirada no livro homônimo de Flávio Gomes, Lilia M. Schwarcz e Jaime Lauriano, a exposição atua como um desdobramento do projeto editorial, ampliando o debate acerca de narrativas mais diversas e inclusivas. 

Mulambo retrata Aleijadinho
Moisés Patricio retrata Salustia

A mostra apresenta 103 trabalhos inéditos, concebidos por 36 artistas contemporâneos, a partir das 550 biografias negras presentes no livro publicado pela Companhia das Letras, no início do ano. Organizada a partir de seis eixos temáticos — Rebeldes, Personagens atlânticos, Protagonistas negras, Artes e ofícios, Projetos de liberdade e Religiosidades e ancestralidades —, a proposta não apenas recupera, dentro das possibilidades, parte da invisibilidade social causada a nomes apagados ou nunca registrados na história cultural brasileira, como serve de manifestação dos interesses atuais da curadoria e de uma política mais heterogênea para constituir o acervo da instituição.

Para falar sobre esses assuntos, conversamos com o pesquisador e autor do livro Enciclopédia Negra, Jaime Lauriano, e a curadora da Pinacoteca, Ana Maria Maia

Dalton Paula retrata Daniel
Juliana dos Santos retrata Caetana Diz Não

Como nasceu a ideia da exposição Enciclopédia Negra e como se deu o processo de transportar o conteúdo do livro para o espaço da Pinacoteca?

Jaime: A ideia de realizar uma exposição com os retratos produzidos para a Enciclopédia Negra acompanha o projeto desde seu início, pois mesmo antes de pensarmos em quem convidaríamos para retratar os biografados, eu, a Lilia Schwarcz e o Flávio Gomes já sabíamos da importância de exibir as obras originais. Porém, ainda não tínhamos um formato que nos agradasse, porque não gostaríamos que as obras integrassem o acervo de um museu privado, ou então que o conjunto fosse desmembrado em diversas coleções particulares. Nosso maior receio era que se tornasse impossível a realização da exposição completa no futuro. Como sou conselheiro da Pinacoteca e conheço de perto o importante trabalho de renovação do acervo, propus que, junto aos artistas, doássemos os retratos para o acervo da Pinacoteca e montássemos uma exposição para mostrar a importância dessa doação para a história da Pina. Por isso, o que pode ser visto na exposição Enciclopédia Negra não é a simples conversão do conteúdo do livro em um espaço expositivo. O que se vê ao adentar as 3 salas destinadas à mostra é a ação conjunta de muitas pessoas que trabalharam arduamente para fazer, mais que uma exposição, uma importante intervenção na história da arte brasileira.

Ana Maria Maia: A Pinacoteca tornou-se parceira da Enciclopédia Negra enquanto a escolha de artistas e o comissionamento de obras estavam sendo planejados. Esse processo criativo resultou em 103 obras em diversas linguagens a serem doadas pelos artistas para o museu. Diante do conjunto, discutimos algumas premissas para iniciar a curadoria da exposição. Pensamos que, contrariando a lógica alfabética do livro, seria interessante agrupar as obras em núcleos temáticos, que enfatizassem aspectos e permitissem aos visitantes acessarem histórias de vida e luta afins, mesmo que muitas vezes ocorridas em momentos e lugares bem diferentes. Também pareceu imprescindível preservar o teor literário e discursivo da Enciclopédia e, para isso, editamos pequenos verbetes que apresentam as personagens e podem ser vistos logo abaixo das obras. Por fim, destacaria o modo como procuramos aproximar a coleção que chegou com a Enciclopédia Negra (a dita Pinacoteca Negra) com obras que já pertenciam ao acervo do museu. Criamos uma sinalização gráfica para marcar as salas de exposição de longa duração com a presença de artistas biografados pelo projeto. Ainda para situar artistas biografados, e para estabelecer relações mais próximas deles com os núcleos curatoriais, trouxemos para as salas de exposição temporária estudos de Sidney Amaral e esculturas de Mestre Didi e Rubem Valentim. Além dessas obras, destaco a opção por mostrarmos a obra Baiana, um comodato do Museu Paulista, com autoria desconhecida, feita no século XIX, quando dificilmente uma pessoa com esse perfil de gênero e raça era retratada individualmente. A pintura apresenta uma mulher negra cuja caracterização mistura vestes de mulheres brancas de elite a colares de matriz africana e afro-brasileira. Apesar da natureza afirmativa da imagem, a autoria desconhecida faz perceber como as estruturas sociais e artísticas podem ter mantido essa identidade invisível por tanto tempo. Essa invisibilidade é muito significativa para se pensar a que contexto e herança se dirige um projeto como a Enciclopédia Negra.

Desali retrata Inacio da Catingueira
Desali retrata Joaquim Pinto da Silva
Desali retrata Hilaria

A exposição exibirá um conjunto de 103 obras, de um total de 550 personalidades negras registradas no livro. Em que consistiu o desafio de realizar esse recorte e qual foi o critério utilizado para tal?

Jaime: Nosso principal desafio foi conseguir reduzir uma lista gigante, que conta com maravilhosas narrativas, para uma lista um pouco menor. Para isso, tivemos que adotar alguns critérios, que conduziram o recorte que podemos ver na exposição. Eu vou elencar, aqui, os principais critérios que utilizamos para escolher os biografados que seriam retratados. O primeiro deles foi escolher biografados que não possuíssem retratos, ou que, se possuíssem, não condiziam com a sua história de vida. Outro critério que adotamos foi buscar um equilíbrio de gêneros, porque queríamos, sempre que possível, fugir da obviedade de nomes – e por que não dizer de representações? –, da história do povo negro no Brasil. Mais um critério que posso destacar foi mostrar a complexidade das histórias da população negra brasileira; por isso escolhemos retratar diversas lutas, diferentes profissões e múltiplas formas de existência.

Jackeline Romio retrata Ana de Jesus
Ayrson Heráclito retrata Domingos Sodre
Elian Almedia retrata Vitória, Catarina e Josefa

As obras são assinadas por 36 artistas contemporâneos. Como se deu a escolha desses nomes? É possível pensar um diálogo uniforme entre as obras ou cada artista produziu de forma independente?

Jaime: Desde o princípio do projeto, a descentralização do eixo Rio-São Paulo foi um dos fios condutores tanto para a escolha dos biografados retratados quanto para a escolha dos e das artistas que os retratariam. Por isso, pesquisamos em diversas fontes (mídias sociais, exposições, publicações e perguntando para nossos pares) nomes de artistas negros e negras de todas as idades e níveis de inserção no circuito institucional de artes e, principalmente, que residissem e trabalhassem fora do eixo. A partir disso, reunimos informações de diversos artistas e começamos a fazer uma conta que, no final, equilibrasse gênero, localidade, idade e inserção no circuito institucional de artes. Com isso, chegamos à lista de 36 artistas que compõe tanto o livro quanto a exposição Enciclopédia Negra.

Outro ponto importante de destacarmos aqui é que a escolha dos biografados retratados pelos 36 artistas se deu a partir do cruzamento da história da personalidade retratada com o trabalho e a história de vida do ou da artista retratante. Essa foi uma escolha curatorial; queríamos que a obra fosse produzida a partir do impacto desse encontro, pois assim o resultado seria um retrato com afeto (no sentido de produzir afetos múltiplos). Por isso, mesmo sendo 103 obras únicas e distintas entre si, podemos traçar alguns diálogos que norteiam toda a exposição/coleção. E o mais importante deles é que, em sua grande maioria, as obras refletem, também, a história de quem produziu uma imagem sobre a história de outra pessoa negra.

Talvez a principal diferença entre o livro e a exposição esteja no método de apresentação das biografias. Enquanto o livro segue a ordem alfabética, a exposição optou por seis eixos temáticos. Como esses temas se articulam e que história sua disposição pretende revelar ao público que visitar a Enciclopédia Negra?

Jaime: Eu não diria que a divisão por núcleos seja uma diferença entre o livro e a exposição, pois todo o projeto foi pensado a partir desses núcleos. Porém, por se tratarem de mídias diferentes, a exposição e o livro têm particularidades que são impossíveis de serem replicadas. Por isso fica a percepção de que existem diferenças gritantes entre uma e outra. Falo isso porque o projeto se desdobra em diferentes frentes, e sempre que isso acontece todos os envolvidos pesquisam a fundo as particularidades de cada mídia que vamos trabalhar. Pegando como exemplo o que você apontou na sua pergunta, a Enciclopédia Negra é organizada alfabeticamente no livro, pois é assim que as enciclopédias são organizadas. Porém, ao expandirmos o conteúdo do livro para uma sala expositiva, tivemos que pensar como trazer uma outra forma de leitura para o conteúdo produzido, pois aqui o protagonismo é das obras originais. Por isso, precisamos, além de evidenciar os núcleos (que estão presentes no livro nos apontamentos de leitura ao final de cada verbete), adaptar os verbetes para textos que pudessem ser lidos em uma exposição. Essas e outras adaptações tornam o projeto um organismo vivo, que se molda ao mesmo tempo que transforma as estruturas com as quais se relaciona. Assim, constrói, a cada novo desdobramento, diversas possibilidades de contar e escrever a História do Brasil.

Sonia Gomes retrata Luzia Pinta
Mônica Ventura retrata Dona Afra

Nos últimos anos, a Pinacoteca, os museus e os agentes culturais como um todo estão fazendo sua parte para interromper e reparar uma história de invisibilidade evidente. De que forma podemos pensar a Enciclopédia Negra como um novo momento na trajetória da Pinacoteca em termos de exposições futuras, aquisição de acervo e formação de público? 

Ana Maria Maia: Não sei se a reparação é tão simples e imediata assim, mas encarar o problema do racismo e do colonialismo nas diversas instâncias da sociedade brasileira é urgente, e cabe às instituições culturais fazer os movimentos que estiverem ao seu alcance, tanto na programação quanto nas suas estruturas de trabalho e poder decisório. A Pinacoteca tem vivenciado essa reflexão, o que envolve também pensar a história da instituição e o perfil do seu acervo. A gestão de Emanoel Araújo, entre 1992 e 2002, teve um papel fundamental na busca por representatividade negra. Nos últimos anos, criar bases para confrontar a prevalência da branquitude voltou a ser uma missão central do museu. Isso envolve refutar hegemonias, revezar vozes e paradigmas, tornar cotidianos não só a temática e tampouco só as obras, mas artistas, pensadores, curadores negros e negras, indígenas. A nova exposição de longa duração do acervo do museu, inaugurada em 2020, conta com obras de 26 artistas afro-brasileiros, enquanto a anterior só tinha 7. Apesar de ainda tímido em relação à presença de artistas brancos, esse número já é resultado de diversos esforços que a Pinacoteca tem feito e continuará a fazer. A programação de 2022 terá maior protagonismo de artistas negros, por meio de um projeto no Octógono e uma individual na Pina_Estação, de artistas cujos nomes ainda serão divulgados. 

A mostra e a doação da Enciclopédia Negra representam um aporte muito importante para essa construção institucional. Ao trazer obras de 36 artistas negros e negras que, em grande parte, ainda não constavam no acervo do museu, o projeto cria uma intervenção imediata nessa representatividade. Para além dos números, o faz enfatizando um caráter coletivo, as possibilidades de articulação de artistas de diferentes gerações, regiões e circuitos. A rede, isso que chega ao museu junto com a Enciclopédia, fica posta como uma estratégia contundente para se lidar com problemas de ordem estrutural, como a necropolítica e as diversas formas de invisibilização das populações negras e indígenas no Brasil.  

Micaela Cyrino retrata Henriqueta Maria da Conceição
Arjan Martins retrata Zumbi
Panmela Castro retrata Catarina Cassage

Exposição Enciclopédia Negra
Pinacoteca de São Paulo
01.05.21 a 08.11.21
Curadoria: equipe do projeto Enciclopédia Negra e da Pinacoteca de São Paulo

Mais informações: www.pinacoteca.org.br