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Entre mares e travessias: afetos, rotas trançadas e memórias negras

Quais são as distâncias que separam Brasil e Moçambique? Poderíamos pensar que são as águas profundas e antigas dos oceanos Atlântico do lado de cá e Índico do lado de lá. Porém, se nos atentarmos melhor, perceberemos que existem muitos outros caminhos que podem ser traçados, ou, melhor dizendo, trançados.

Para esta edição da revista Amarello, que trata especialmente de afetos e resistências indígenas e negras, escolhi falar sobre o trabalho de Juh Almeida, diretora e fotógrafa baiana, residente em São Paulo. Na verdade, acredito que eu tenha sido escolhida porque, ao ver as imagens feitas durante sua estadia em Maputo, Moçambique, em abril de 2019 – resultado de um projeto premiado pela Secretaria de Cultura de Salvador junto com o Centro Cultural Brasil-Moçambique –, fui arrebatada pela profusão de beleza, cores e formas que Juh encontrou por lá. 

O intuito do projeto era dar aulas de fotografia para mulheres, mas o que vemos nas imagens são registros do cuidado de mulheres africanas com seus cabelos e tradições. As fotos aqui compartilhadas abordam dois momentos da fotógrafa em Moçambique: o seu encontro com Dona Aurora, retratada nas imagens em preto e branco e dona das tranças que abrem este texto. Uma mulher trabalhadora e atravessada pelas histórias permeadas por diferenças de classe no país, e um dia no salão de beleza da cabelereira Constance Chamboco, situado em Ngalanza, 7ª província de Maputo. As fotos coloridas por tons de rosa e verde água mostram Juh retratando crianças fazendo travessuras, mulheres cuidando de seus cabelos, trocando confidências cotidianas, transparecendo cumplicidade e familiaridade com as lentes. Imagens em que a fotógrafa nos mostra as semelhanças entre Moçambique e Brasil, algo que talvez só pudesse mesmo ter sido captado por uma mulher negra como a Juh. 

Ao reparar nas cores, texturas e jeitos de trançar, facilmente poderíamos confundir lá com aqui. A construção das belezas negras passa diretamente pelo afeto, pela diversão, pelo riso solto de Constance e de suas amigas e clientes, todas juntas. É um momento de celebração e encontro – ou melhor, reencontro. De Juh com o continente de seus mais velhos e de estéticas muito antigas que tanto no Brasil como na África se reinventam e se atualizam através das mechas de cabelos repartidos, no pente garfo que encontra e desfaz os nós do crespo prestes a ser entrelaçado por saberes ancestrais. As capulanas coloridas, tecidos tradicionais de Moçambique, adornam os corpos negros; o trançado parece uma costura.

Presenciar os processos de trançar em Maputo e em Salvador sugere uma travessia de saberes, uma permanência de vivências, que, por sua vez, estabelece um laço de identidade, um tipo de processo afetivo de construção da beleza que atravessa o mar e pode ser encontrado aqui. As tranças são, sobretudo, símbolos que não guardam apenas um rico patrimônio estético, mas também têm um sentido político: a experiência negra do trançar e do viver, com seus afetos, maneiras e pensamentos, seja na África, seja no Brasil, é uma experiência de luta e resistência. Estabelecer essas pontes de identidade é fortalecer-se com os dois lados do mar.

Em conversa com a Juh, tive a oportunidade de ler um fragmento do seu diário de viagem, relato que só coroa o que podemos ver nas imagens. Por isso, a convidei para assinar este texto comigo, compartilhando com vocês, leitores, algumas passagens:

Maputo, 26 de abril de 2019

Por Juh Almeida

Som de cabelo sendo penteado por um pente garfo, música baixa no rádio, vozes de mulheres falando como se cantassem, “homem, pega ali minha cerveja”, “trança do lado de cá também”, “você acha mesmo que eu fico bonita com esse penteado?” E foi com essa paisagem sonora que meus pés me levaram para dentro do salão da Constance, na sétima província de Maputo, em Moçambique. Com a licença, entrei, cumprimentei cada uma delas e meu coração confirmou que já nos conhecíamos há muito tempo. Meu corpo de mulher negra, afro-brasileira e diaspórica tremeu ao atravessar o Atlântico e pisar no Índico, e ali, entre as paredes esverdeadas, eu lembrei do mar, e não me sentia mais naufragada, mas como se pisasse em terra segura. Fui arrebatada pela potência e força que emanava daquelas mulheres. Suas histórias escoavam pelos meus pensamentos como lembranças antigas, do verde-água pintado pela própria mão da Constance, mão ligeira que agora ali trançava o cabelo das suas amigas, mãos que seguravam sua filha nos braços, mãos que amarraram como presente uma capulana na minha cintura e que, em um abraço-acalanto, eu pude entender: eu estava em casa.

Que possamos seguir em boas travessias.

Com afeto.