“Esta revista surge da inteligência, filosofia,
cor, beleza, dor, raiva e afeto

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Futuros Possíveis

Eu sempre erro nesta conta, mas acho que me mudei de Recife para São Paulo em abril de 2016. Encorajado pela amiga e artista maravilhosa Xênia França, topei a ideia de tentar dar seguimento à minha carreira de pianista, compositor e cantor numa cidade que me oferecesse maiores possibilidades de trabalho. 

São Paulo ainda é — ou era, pois as coisas estão mudando tanto nesse segundo ano de pandemia — a principal cidade brasileira a receber artistas vindos das mais diversas regiões do Brasil e do mundo. Nos primeiros meses, morei no apartamento de Xênia, enquanto me adaptava à nova cidade e às inúmeras mudanças que me encantavam e, acima de tudo, me assustavam.

No apartamento aconchegante, na Zona Oeste de SP, viviam Xênia e Samira Carvalho, modelo de carreira internacional, amiga e roommate desde muitos anos. Eu, muito timidamente, passei a fazer parte da paisagem daquele apartamento habitado por duas mulheres pretas, incríveis e potentes. 

Junto a mim, silenciosamente existiam ali dentro um altar em homenagem a Michael Jackson, num cantinho da sala; toalhas de mesa coloridas; plantinhas verdes e bem cuidadas; e dois exemplares da revista Amarello, sempre à vista. Foi ali, pela primeira vez, que vi, li e me encantei com a publicação. Numa delas estavam lá, lindos e pretos, Xênia França e Tiganá Santana, dentre outras personalidades negras.

Sempre que eu me permitia sair do quarto, onde morei a maior parte do tempo, sem perceber que, com isso, causava a impressão de não querer interagir com aquelas duas figuras maravilhosas que me recebiam calorosamente em seu cantinho sagrado, eu lia algum texto da revista e olhava por horas as fotos e ilustrações, deitado no sofá, enquanto ouvia as músicas que Xênia ensaiava para alguma apresentação.

Alguns meses depois, me despedi das duas amigas para finalmente alçar voo na nova cidade, morar no centro e iniciar a sequência de conquistas e dificuldades que viriam a se apresentar.

Estar em São Paulo me proporcionou lindos encontros. Através do artista e amigo Bruno Cosentino, conheci Tomás Biagi Carvalho, idealizador e editor desta revista que me encantou à primeira vista – como o título da canção de Chico César.

Anos depois, de volta ao Nordeste por conta da terrível pandemia que enfrentamos agora, recebo o convite para ser o editor desta edição que vocês têm em mãos. E eis-me aqui, a convite do querido amigo Tomás, participando de uma edição simbólica, linda, potente, trazendo pessoas incríveis, que admiro profundamente, para falar de assuntos muito caros para a comunidade preta e indígena – comunidades estas onde eu e os editores e editoras convidados existimos, como corpos e mentes políticas.

Para dar conta da diversidade de pautas, estéticas, histórias e culturas dessas duas comunidades irmãs, convidei para serem coeditores (em ordem alfabética):

Gean Ramos Pankararu, filho da comunidade indígena Pankararu no Sertão Pernambucano, que desbravou o mundo como cantor e compositor, além de ser produtor cultural, ativista e articulador indígena. Fundador da Mostra Pankararu de Música, empenhado no fortalecimento da música indígena contemporânea.

Gil Alves é soteropolitano, graduado em Produção Audiovisual, formado em dança pela Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Atuou como diretor artístico de shows de artistas/bandas como Harmonia do Samba e Encontro de Fenômenos e de espetáculos como a última edição do projeto Concha Negra e o Afro Fashion Day (Salvador), além de trabalhar na concepção artística de produtos audiovisuais. 

Seu último projeto, o videoclipe “Adupé Obaluaê” (música do meu último álbum lançado, chamado Do Meu Coração Nu), no qual foi roteirista, diretor e performer, recebeu prêmios em festivais no Brasil, Europa, África e EUA.

Hanayrá Negreiros é metade paulista, metade maranhense e mestra em Ciência da Religião pela PUC-SP. Como pesquisadora, investiga estéticas negras que se manifestam por meio do vestir, da cultura material e visual, das religiosidades e das memórias de família. Assina a coluna Negras Maneiras na ELLE Brasil.

Pâmela Carvalho é carioca, moradora do Parque União, no Conjunto de Favelas da Maré. Historiadora, educadora e gestora cultural, pesquisa as relações raciais de gênero e direitos das populações de favelas. Coordenadora do eixo “Arte, Cultura, Memórias e Identidades” nas Redes de Desenvolvimento da Maré e integrante do grupo Intelectuais Negras, da UFRJ, é uma das fundadoras do Quilombo Etu, um coletivo que trabalha a cultura popular a partir da educação antirracista.

Esta revista que você tem em mãos surge da inteligência, filosofia, cor, beleza, dor, história, poesia, luta, raiva, afeto, arte e excelência de Gean, Gil, Hanayrá e Pâmela.

Ela tem também, em seu conteúdo, a genialidade dos nossos convidados e convidadas, intelectuais, ativistas e artistas pretos e indígenas que nos inspiram todos os dias e que compartilham aqui suas vivências, afetos e tecnologias. Um grande quilombo ocupando as páginas desta revista amada, que tem no seu nome duas palavras que definem esse nosso encontro, Amar e Ello.

Como vivemos num país essencialmente preto, indígena, miscigenado e, ao mesmo tempo, racista, excludente, pensado e construído para um ideal de branquitude, espaços de discussões, de aquilombamento, de exposição da história, da filosofia, da estética preta e indígena são necessários e bem-vindos.

Conheçam e consumam as produções pretas e indígenas. Há uma fonte infinita de riqueza e de belezas disponíveis, basta querer de verdade conhecer o Brasil real – este, por exemplo, aqui também presente.

Boa leitura!