Priscila Carvalho na Marcha das Mulheres negras do Rio de Janeiro, 2018. Fotografia de Milsoul Santos.
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Geração tombamento: afrofuturismo e pluralidade estéticas como ferramentas de descolonização de corpos negros

Racismo e a tentativa de colonização dos corpos negros

O racismo é uma tecnologia de poder que opera por meio do controle a partir da discriminação sistêmica de grupos étnico-raciais subalternizados e, no Brasil, sempre esteve relacionado com o fenótipo, que é o conjunto de características físicas tais como a textura dos cabelos, o formato dos lábios, do nariz e, sobretudo, a cor da pele.

Um líder Iorubá conta que uma prática comum aos europeus que chegavam aos portos para sequestrar e trazer pessoas africanas em condição de escravizadas para os territórios invadidos (colonizados) era, antes de embarcá-los, obrigá-los a circundar uma árvore a qual chamavam de “árvore do esquecimento”. Assim, suas memórias sobre seu povo, sua família, sua cultura, tudo seria apagado, o que facilitaria o processo de subjugação.

A “árvore do esquecimento” que temos circundado até os dias atuais pode ser compreendida como o processo de apagamento ao qual a população afrodiaspórica tem sido submetida há séculos. Fomos paulatinamente desconectados de nossas origens étnicas, nossas ciências, nossos sistemas espirituais e nossos referenciais estéticos.

O processo racista de controle social atua, entre outras frentes, na destruição da autoestima e da autoimagem que pessoas negras têm sobre si e seus iguais. Temos sido expostos a imagens de homens, mulheres e crianças negras em contextos de violência e resumidos a estereótipos inferiorizantes. Corpos como os nossos são maioria no sistema prisional e nas estatísticas de assassinato. Esses estereótipos são repetidamente exibidos e reforçados nos livros didáticos, nas propagandas, passando pelos filmes e telenovelas exibidos em horário nobre. Dificilmente temos acesso a imagens de pessoas negras ocupando espaços de poder.

Embora sejam muitas as camadas de complexidade em um sistema estruturado no racismo, sempre houve articulação organizada e protagonizada pela população negra. Dos levantes quilombolas ao Black Lives Matter, pessoas africanas e seus descendentes têm se reerguido como morada de potência.

A geração tombamento: um movimento afrofuturista

Lacração ou tombamento são expressões muito utilizadas pela comunidade negra e LGBTQIA+ para reafirmar seu poder, sua beleza e sua ousadia em ser quem são diante de uma sociedade que impõe padrões hegemônicos aos corpos, entendendo como belos, dignos de afeto e respeito os corpos brancos, magros, heterossexuais e cisgênero. 

A partir de 2014, devido ao sucesso do hit “Tombei” da rapper curitibana Karol Conká, o movimento protagonizado pela juventude negra dos grandes centros urbanos do Brasil que se empodera através da estética passou a ser conhecido pelo nome “Geração Tombamento”. É importante, porém, ressaltar que o uso das estéticas negras como ferramenta de combate ao racismo está presente em diversos momentos da história e em muitos territórios ao redor do mundo.

Uma das principais inspirações estéticas para a “Geração tombamento” são os Sapeurs ou La Sape (Société des Ambianceurs et des Personnes Élégantes). Os Sapeurs são grupos originários de Kinshasa, na República Democrática do Congo, e Brazzaville, na República do Congo.

A rapper Karol Conká (Divulgação)

O movimento surgiu na década de 1920 como uma forma de resistência ao jugo da colônia Belga. Para eles, vestir-se bem é uma forma de confrontar o ideal de superioridade europeia. 

Ativa até hoje, a comunidade La Sape é extremamente respeitada pela população. Seus trajes luxuosos contrastam com a realidade de extrema vulnerabilidade socioeconômica à qual seus países estão submetidos, e é justamente através desse contraste que os Sapeurs expõem sua crítica. Ser um Sapeur é um ato de rebeldia. É dizer para o mundo que luxo, beleza e exuberância são direitos de todos.

Contestar os padrões impostos é um posicionamento político que vem de dentro para fora e do passado para o presente. Neste sentido, podemos afirmar que os movimentos políticos de resgate da autoestima de pessoas negras operam na perspectiva de Sankofa, um valor civilizatório de povos da África Ocidental que consiste em retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro. Sankofa vai dialogar diretamente com a perspectiva do afrofuturismo, corrente de pensamento na qual a “geração tombamento” muito se inspira.

 O conceito de afrofuturismo chegou ao ambiente acadêmico no início da década de 1990 através dos estudos do pesquisador estadunidense Mark Dery. Mark, homem branco, escreveu o artigo “Black to the future”, no qual pretendia investigar a ausência de narrativas negras na cibercultura, nas tecnologias computacionais e nas obras de ficção especulativa. O artigo de Mark e seus desdobramentos, inclusive dentro da comunidade negra, apontavam para um questionamento central: por que é tão difícil para a população negra vislumbrar imagens efetivas de futuro? 

O processo de apagamento do referencial cultural das pessoas africanas desterritorializadas e de seus descendentes negou o direito ao passado. Ora, sem imagens positivas de passado, como poderíamos gozar das mesmas possibilidades de projeção de futuro das quais gozam os grupos não racializados? 

Ainda na década de 1990, o conceito de afrofuturismo foi apropriado e ressignificado pela comunidade negra dos Estados Unidos e logo se tornou uma corrente crítica de pensamento em toda a diáspora africana, inclusive no Brasil.

A curadora de arte, pesquisadora e atriz estadunidense Ingrid LaFleur define o afrofuturismo como “uma forma de imaginação de futuros possíveis através de uma lente cultural negra”. É através dessa lente-espelho que a juventude negra tem se olhado e encontrado, no presente, trajetórias do passado que pavimentam as possibilidades de futuro.

Somos tombamento, somos Black Power – referências históricas da resistência negra através da estética

Para que fosse possível, no século XXI, a existência do movimento lacração/tombamento, houve uma longa caminhada de lutas pela emancipação, pelos direitos e pela recuperação da autoestima da população negra. A reconstrução dessa autoimagem só é possível através de um processo coletivo de retorno às raízes.

A pedagoga Nilma Lino Gomes discute essa temática em seu livro O Movimento Negro Educador. Ela diz: 

“O corpo negro não se separa do sujeito. A discussão sobre regulação e emancipação do corpo negro diz respeito a processos, vivências e saberes produzidos coletivamente

(…)

Há aqui o entendimento de que assim como “somos um corpo no mundo”, somos sujeitos históricos e corpóreos no mundo. A identidade se constrói de forma coletiva, por mais que se anuncie individual.” (Gomes, 2017, p. 94)


Manifestação do partido dos Panteras Negras, 1970. Divulgação.

Earth, Wind & Fire. Banda que traz em sua estética fortes referências africanas e futuristas. Divulgação.

Sapeurs do Congo. Divulgação.

Uma das principais referências no que diz respeito à reivindicação do orgulho negro é o movimento Black Power, que surgiu nos Estados Unidos na década de 1960. Inspirados no “Harlem Renaissance” da década de 1920, o movimento Black Power fomentou a criação de diversos espaços educacionais e culturais independentes para a população negra, além de romper com padrões estéticos impostos pela branquitude, tais como o uso de químicas para o alisamento dos cabelos. 


Priscila Carvalho durante participação do Coletivo As Panteras Negras na Marcha das Mulheres Negras do Rio de Janeiro, 2018.

Já no Brasil, um dos maiores símbolos do orgulho negro é o bloco afro Ilê Aiyê. Fundado em Salvador, Bahia, em 1974, o Ilê Aiyê se consolida no auge do renascimento cultural negro que se desenvolvia nas diásporas africanas.

Para além de um bloco, o Ilê é um movimento político de reeducação, conscientização e empoderamento para o povo negro.

Uma das atividades mais conhecidas do bloco Ilê Aiyê é a “Noite da Beleza Negra”, evento no qual é coroada a Deusa do Ébano, a rainha do bloco. O objetivo da coroação da Deusa é exaltar o poder, o talento e a beleza herdada dos ancestrais africanos.

A “Noite da Beleza Negra” tem um importante impacto social, econômico e simbólico na comunidade do bairro da Liberdade, onde fica a sede do bloco. Os impactos atingem também o campo do subjetivo, sobretudo para crianças e jovens negros. Muitas meninas negras passaram a reconhecer a própria beleza através da imagem das Deusas do Ébano. É a reconstrução da autoestima que o racismo fragmentou. 

 Retomando a perspectiva de Sankofa e do Afrofuturismo, percebemos que “tombamento” é o movimento constante de uma juventude negra que revisita o ontem e ressignifica o hoje para criar o amanhã. É essa juventude que tem ocupado as ruas e disputado os espaços de poder. É essa juventude que tem ditado moda, comportamento, consumo e nichos de mercado. É essa juventude que “lacra” na estética, afronta os padrões e se apresenta como corpos políticos exercendo seu direito de existir em plenitude.


Yemi Alade, cantora nigeriana que apresenta em sua estética referências de reinos e civilizações tradicionais do continente africano numa releitura futurista. Divulgação.