As pesquisas sobre história do Brasil que não se referenciam por um viés colonial e europeu crescem de forma exponencial. São muitos os trabalhos que buscam analisar os processos históricos sob uma perspectiva que não invisibilize as experiências não brancas. De todo modo, o caminho ainda é longo, e há muitos embates a serem travados. Um exemplo que confirma isso são os conteúdos expostos nos currículos das escolas de grande parte do país, que perpetuam noções dualistas e simplistas e muitas vezes reproduzem narrativas que não pontuam as permanências e descontinuidades com o tempo presente. Vamos voltar no tempo: há grandes chances de que, no período em que você, leitor, teve algum tipo de contato com as experiências negras e indígenas no colégio, estas tenham sido representados pelo viés da colonização e escravidão. A narrativa oficial que permanece até os dias atuais nas escolas é de que os indígenas foram utilizados como mão de obra escravizada até a chegada de africanos, sendo substituídos logo em seguida pois eram “preguiçosos” para trabalhar nas grandes lavouras e na casa grande. Não há qualquer menção sobre possíveis interações entre esses dois grupos, e hoje a historiografia já expõe indícios suficientes para se comprovar o contrário. É sobre isso que este texto versará, a partir de uma breve resenha crítica de um dos clássicos da historiografia brasileira.
A obra do historiador brasileiro Flávio dos Santos Gomes, intitulada Mocambos e quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil mobiliza muitos detalhes sobre as formações, dinâmicas e permanências de movimentos de resistência das populações de origens africanas e indígenas. O autor menciona que, entre os primeiros indivíduos sequestrados para o trabalho compulsório no território que hoje compreende o Brasil, já havia o que era chamado de mocambo – denominação mais antiga, registrada no final do século XVI – e, posteriormente, quilombos – a referência a esse nome vem de regiões da África Central, no sentido de designar “acampamentos improvisados”, passando a ser mais utilizado a partir dos séculos XVIII e XIX (GOMES, 2015, p. 10). Na maior parte dos casos, associamos essas ações como exclusivas das populações que os europeus vieram a nomear de africanos. E trata-se de uma inverdade, visto que, desde o século XVI, a colônia portuguesa designava alguns territórios da Amazônia como “mocambos de índios” para caracterizar locais onde indígenas que conseguiam fugir se instalavam (GOMES, 2015, p.59).
Em um país que recebeu mais de 5 milhões de homens e mulheres do continente africano para sistemas de trabalhos compulsórios e perversos durante os mais de três séculos sob o regime escravista, acredito que o debate sobre os movimentos de fuga e construção de quilombos ainda se restringe muito ao Quilombo de Palmares, na Serra da Barriga, e a comunidades exclusivamente africanas/crioulas. Essas ações proliferaram no Brasil como em nenhum outro país das Américas. A população cativa de origem indígena formava alianças e fortalecia seus agrupamentos. Há indícios de quilombos construídos por negros e indígenas nas regiões baianas (especialmente na área do sertão baiano), Goiás e Mato Grosso (GOMES, 2015, p. 60-61).
Como já mencionado, por muitas vezes o senso comum e até mesmo os currículos escolares tratam as experiências das populações de origem indígena no cativeiro de forma rasa, reproduzindo a ideia de que estes foram logo substituídos pela mão de obra escravizada africana devido a “maus comportamentos”, como desobediência e preguiça, que contrastavam imediatamente com a população de origem africana, caracterizada por sua adaptação e obediência em terras brasileiras (GOMES, 2015, p. 58). Essa afirmação, além de reproduzir noções racistas de populações indígenas “preguiçosas”, faz a manutenção de um discurso – também preconceituoso – de indivíduos negros como naturalmente dispostos a trabalhar em regimes desumanos organizados pelo sistema plantation no Brasil e nas Américas.
O que os estudos historiográficos vêm demonstrando é a multiplicidade étnica dos agrupamentos de cativos durante o período colonial. Grupos indígenas como os xavantes, carijós, maracazes, araxás e pataxós eram alguns dos que construíam essa empreitada com africanos escravizados, oriundos de regiões como a África Central e Ocidental, Luanda, Senegâmbia, Baía do Benin, entre outros. Foram cenários para acolhimentos, mas também tensões, ocasionadas por diversos motivos. Essas comunidades de fugitivos por vezes eram projetadas ainda em ambiente de trabalho. Segundo Flávio Gomes, não é difícil imaginar essas populações fugindo juntas e concretizando seus objetivos ao construírem comunidades quilombolas. O autor expõe aspectos que demonstram as possíveis “zonas de proteção” e de trocas culturais no sentido de impedir que seus inimigos em comum – no caso, os setores coloniais – adentrassem seus territórios de resistência, tendo inclusive a presença dos chamados “caborés”, frutos das reproduções entre indígenas e africanos. Todavia, é importante não mobilizar narrativas que endossem perspectivas românticas e que tratem dessas convivências de forma estritamente pacífica. As tensões eram evidentes, visto que há indícios de sequestro de mulheres africanas e indígenas por parte dos quilombolas, bem como ataques e disputas étnicas sob muitas justificativas (GOMES, 2015, p. 60). Esses processos impactaram as sociedades no entorno, influenciando elementos como os conflitos entre quilombolas e colonos – dos quais dou ênfase para o grupos dos bandeirantes –, miscigenações e o que entendemos como “religiosidade”.
Outra narrativa que aparenta estar muito disseminada no imaginário de nós brasileiros é a que descreve as dinâmicas dos territórios quilombolas de forma isolada. Enganam-se aqueles que acreditam não ter havido ao menos trocas comerciais entre os quilombos e as regiões do entorno. Esses espaços também eram edificados em regiões fronteiriças das colônias de Portugal e da França. Mesmo que esses fossem territórios de disputas, os fugitivos se aventuravam e se encontravam para realizar seus sonhos de liberdade. Muitos dos mocambos e quilombos foram construídos em locais que pudessem contribuir para a permanência de indígenas e africanos, como florestas e regiões que beiravam rios e cachoeiras, bem como territórios com imprecisões fronteiriças e jurídicas entre Portugal, França e Holanda. O território limítrofe entre Brasil e Guiana Francesa em diversos momentos era ocupado por quilombolas, com várias fontes documentais que comprovam as disputas espaciais de agrupamentos como os que eram erguidos entre o então Grão-Pará e a Guiana Francesa, assim como a região amazônica e a então Guiana Holandesa.
As trocas comerciais também merecem destaque, visto que esses homens e mulheres possuíam perspectivas de maior autonomia ao tingirem roupas, plantarem na roça, pastorearem gado e fabricarem tijolos no verdadeiro sentido de, apesar do receio das tentativas de destruição por parte da colônia, construírem suas estratégias emancipatórias (GOMES, 2015, p. 66). Com acesso a documentos do século XVIII, é possível perceber as negociações que as próprias autoridades locais possuíam com os quilombolas de determinadas localizações ao norte do país. É mais um exemplo de que as experiências dos mocambos e quilombos e os setores dominantes eram regidas por constantes tensões e acordos, relações bem mais complexas do que algumas pessoas descrevem ao darem preferência a simples narrativas de fuga, total isolamento e confrontos.
À guisa de conclusões parciais sobre a temática, reafirmo a necessidade urgente de buscarmos os indícios de relações mais estreitas entre as populações de origens indígenas e africanas, assim como ampliar nossos olhares sobre as experiências de afirmação e resistência de quilombolas. Esse é um dos caminhos para que as narrativas e disciplinas históricas possam ganhar novos contornos, que sigam no sentido de olhar esses corpos não brancos como protagonistas de suas próprias trajetórias.