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Pintura Íntima

por Hermés Galvão

No início era o amor pela ideia. Depois, a paixão por quem estava atrás dela. Mas desde sempre houve intimidade entre as partes interessadas, algo sensorial que aproximava criaturas e criadores. Rolava um clima, por assim dizer. Era pura troca. De um lado, o patrono. De outro, o artista. E entre eles, além de muito dinheiro, bastante diálogo. Funcionou bem de Isabella d’Este, primadona do Renascimento, até Peggy Guggenheim, que, a partir da Segunda Guerra, diluiu o mecenato ao concubinato estrelando a maior fotonovela artsy-erótica de que se tem notícia. Serial lover, sadomasô, avarenta e adunca como um rosto de Guernica, colecionou obras grandiosas e homens grandiosos, escritores, pintores e escultores. Da parede da sala para o quarto, da mesa de cabeceira até a cama, e vice-versa, com Laurence Vail, Kay Boyle, John Holms, Samuel Beckett, Marcel Duchamp (há controvérsias) e, tcharan!, Max Ernst, Peggy fez de seu Palazzo Venier dei Leoni, em Veneza, uma casa de tolerância onde livres pensadores ensaiaram o que mais tarde chamariam de liberdade sexual.

Mestres pintaram e bordaram ali, entre lençóis e canvas, sob os olhos mercenários da baranga boêmia que, fato, fez tudo por amor. Seu filme de sacanagem tinha enredo. Com final feliz para todo mundo, até para quem não passou pelo seu infalível teste do sofá – Peggy também promoveu (e não comeu) Jean Cocteau, Kandinsky, Henry Moore, Brancusi, Calder, George Braque e Picasso. Tudo em nome da arte. Misturava o lado pessoal com o profissional –, nada mais feminino… Mas fazia sentido, havia o tesão. E a coleção não mudava com a decoração, tampouco era tratada como investimento, papel, ação. Com Marguerite “Peggy”, a figura do mecenas ganhou outro rumo, outros valores. Foi além do patrocínio e do papel de incentivar a produção artística com o mero objetivo de melhorar a imagem na sociedade – afinal, nada mais déclassé que ter e não investir. Dividir nunca foi o caso… Fomentou exposições, protegeu gerações de artistas da fome e da crise, salvou talentos do anonimato e livrou o circuito da mesmice. Criou, também, a partir de suas iniciativas nobres, uma nova maneira de os milionários sine nobilitate frequentarem o café society sem sentir falta de sobrenome real. Com ela, o dinheiro novo parecia estar nas mãos certas. Paramos aqui. Pois é passado.

Estamos no agora. E talvez seja preciso rediscutir a relação do art patron com o artista (art dealer fica de fora, três é demais), perder o hábito de desaguar capital sobre alguém e alguma coisa que, ouviu-se dizer, “vai valorizar” sem sequer gostar ou, pior, entender. É papo contemporâneo, mas que vem a público não é de hoje. Tom Wolfe, em 1984, alertou sobre a falta de comunicação entre quem compra e quem vende em cínico texto para a Harper’s Magazine: “A arte se tornou um ritual social no qual os ricos investem por não ter nada melhor para gastar, como outrora faziam com a religião”. Susan Sontag, vinte anos antes, em ensaio intitulado Against Interpretation, defendeu a ideia de que, antes de mergulhar no hermetismo das artes, era necessário “aprender a ver mais, sentir mais e ouvir mais. Para que o papel da arte na vida não seja meramente decorativo, mas, sim, subjetivo. Para evitar, assim, o grande mal-entendido que se fez entre os que incentivam e aqueles que aceitam”. Mora na filosofia, mas procede. Há de se sentir qualquer coisa maior que um sentimento de posse. Há de se ter, mas sem se achar. Que colecionadores saibam a fundo o que trazem para casa. Nem que para isso levem o personagem para a cama. Personagem, o artista. Não o galerista.

Fala-se hoje de crowdfunding, ou financiamento coletivo de projetos. Mecenato new age, onde artistas sem um tostão apresentam seus projetos nas redes sociais em busca de patrocínio. Quem acredita na ideia paga para ver, financia a iniciativa, doa o que pode e pronto. É hype garantido ou o dinheiro de volta. E, quem sabe, a possibilidade de amar, de fato, a ideia e até seu idealizador. Nem que seja no plano virtual. É só dar um poke.