Abbas Kiarostami: O rosto como abismo do real
Jean-Luc Godard, a um só tempo eloquente e lacônico, sentencia: “O filme começa com D. W. Griffith e termina com Abbas Kiarostami”. A filmografia de Griffith é marcada pela grandiloquência na mise-en-scène e pela opulência dramática, tendo papel central na consolidação de uma forma (e uma fórmula) de fazer cinema. Griffith pariu o longa-metragem ficcional vendendo a mentira maquiada de verdade.
A tentativa de imbuir a ficção de realismo está no cerne do modo de representação do cinema dominante. Vão nesse sentido a instituição de um método quase militar de filmagem, que inclui uma montagem que tenta apagar a existência da câmera e o plano aberto de contextualização, entre outros. No entanto, o espectador começa a escutar o grunhir da máquina, pois o realismo ostentado pelo filme de ficção tradicional é sufocado por sua própria megalomania. O cinema cada vez menos como fresta para o real e mais como usina de sonhos.
Se na declaração-manifesto de Godard Griffith é o demiurgo, quem é Abbas Kiarostami? Por que é nele que o filme chega ao seu fim? O influente cineasta iraniano, filho simbólico do neorrealismo de Rossellini e companhia, faleceu em 2016 após ter revelado, em quilômetros de película – são no total 25 filmes, entre curtas e longas –, um mundo antes dele invisível. Ou quase invisível, pois o que lhe interessava não era o recheio, mas as migalhas de vida esquecidas na borda do prato. Nadando contra a corrente, Kiarostami era essencialmente antidramático e acreditava que tudo o que vale cabe nas miudezas.
Close-Up (1990), obra-prima do cineasta, é a reconstituição da história real de Hossain Sabzian, um homem humilde acusado de ter personificado o diretor Mohsen Makhmalbaf com intenções ardilosas. Por trás da sinopse aparentemente simples, o filme faz emergirem discussões complexas sobre identidade, verdade e performance. Sobre esses dois últimos temas, é dito com frequência que o cineasta iraniano borra a linha entre documentário e ficção. Mas a realidade é que essa linha já nasceu vaporosa, como a cauda esfumada de um avião. Kiarostami vai além, pois enquanto a maioria dos filmes ficcionais esconde seus artifícios, ele deliberadamente os revela.
Se opondo à grandiloquência narrativa do cinema dominante, o diretor iraniano aposta em roteiros e dispositivos de filmagem simples para propor, acima de tudo, um mergulho na subjetividade humana. Um exemplo metafórico aparece em Cópia Fiel (2010), onde a paisagem da Toscana é introduzida como um reflexo deslizando sobre o para-brisa do carro. Provavelmente, um cineasta griffithiano teria optado por começar o filme com planos abertos da paisagem, em uma tentativa de legitimar a veracidade da intriga ao ancorá-la em uma geografia real. Kiarostami propositalmente empurra essa geografia para as bordas da narrativa, pois o diretor de Cópia Fiel sabe que seu filme não precisa ter como pano de fundo um espaço do mundo real para resvalar no real, visto que a potência de uma história não está no “isso existe”, mas no “isso poderia existir”. A arte brota nos mil caminhos que se bifurcam e floreia no imaginário.
A geografia que interessa a Kiarostami é a do rosto humano, motivo pelo qual ele insiste em um dispositivo minimalista que prioriza planos longos e fechados, abrindo um palco para os personagens se revelarem sem amarras ou truques de direção. Essa importância dada à corporeidade e à coesão espaço-temporal da realidade vem aliada ao mote da aparência como camada metafísica do mundo, ou seja, à relação entre superfície e fundo.
Essa dialética original-cópia é o eixo em torno do qual Cópia Fiel se organiza. O protagonista masculino, William Shimell, explicita o leitmotiv do filme ao celebrar o valor da cópia, tanto na arte quanto na vida: “Esqueça o original, compre uma boa cópia”. O que é a imagem cinematográfica senão uma reprodução mais ou menos aderente ao real? O que não significa que ela seja completamente falsa, pois, como o próprio William declara mais tarde, devemos passar pela cópia para chegar ao original. Mas essa busca, paradoxalmente, deve ser consciente de que a essência está costurada na aparência, como gêmeas siamesas.
Ao assumir que um filme é uma cópia, Kiarostami avisa que estamos assistindo a uma reprodução deturpada da realidade, como a paisagem da Toscana escorregando no para-brisa. Em suma, uma ficção. O famoso olhar-câmera – normalmente interditado por evocar a existência da câmera e, consequentemente, ejetar o espectador do mundo ficcional – multiplica-se ao longo de Cópia Fiel. Em um plano icônico, a protagonista do filme, interpretada por Juliette Binoche, é filmada frontalmente enquanto (se) encara (n)o espelho. Quase como se estivesse ciente de ser objeto do nosso olhar, ela cobre o próprio rosto de batom e máscara. Assim, a câmera se transforma numa espécie de espelho translúcido, rasgando o véu que separa personagem e público.
Essa questão encontra seu paroxismo em Close-Up, onde o protagonista se duplica, tornando-se ao mesmo tempo Sabzian-indivíduo e Sabzian-personagem (de Kiarostami ou dele mesmo?), numa reconstituição do fato que testemunha o teor performático do real. O espectador é quase abandonado num movimento vertiginoso que alterna evento e engodo, pois ele sabe que está vendo uma ficção (Close-up de Kiarostami) baseada num fato (história real de Sabzian) que, por sua vez, é baseado numa ficção (Sabzian finge ser Makhmalbaf) que é baseada num fato (Makhmalbaf é um importante cineasta iraniano), o qual também é baseado numa ficção (Makhmalbaf cria histórias ficcionais) baseada num fato (Makhmalbaf transforma a realidade em ficção). Como dois espelhos face a face, realidade e ficção se encaram e se formam mutuamente uma nas entranhas da outra.
Assim, Close-Up nos questiona: há essência na aparência? Há algo de verdadeiro na mentira? De original na cópia? De real na máscara? Kiarostami parece responder que sim, mas não se atreve a traçar um caminho até essa tal verdade, pois, etérea, ela sempre escorrega por entre os dedos.
Apesar da ambição dessa busca, o cinema de Kiarostami não é pretensioso. Sua grandeza está, ao contrário, em filmar as tais migalhas do real, e talvez por isso ele coloque a câmera tão próxima dos seus personagens, buscando a verdade em cada sulco da face. O close é desdramatizado, deixando de ser uma hipérbole narrativa para se tornar um mergulho no abismo do rosto humano.
A cena do julgamento é um símbolo disso, com uma montagem que alterna os planos abertos da corte com outros fechados no rosto do réu. De um lado está a verdade da Justiça, que simplifica a massa complexa do real ao impor uma sentença; do outro lado está uma outra verdade, mais profunda e brumosa, que Kiarostami procura nas expressões rabiscadas no rosto de Sabzian. Nas palavras do próprio diretor, numa entrevista de 2004: “Na realidade, era um modo de afirmar que naquela sala existiam dois dispositivos: o dispositivo da Lei, que mostra o tribunal e descreve o processo em termos jurídicos; e o dispositivo da arte, que se aproxima do ser humano para colocá-lo em primeiro plano, para vê-lo em profundidade, compreender-lhe as motivações, adivinhar seu sofrimento”1. Close-Up parece duvidar de quase tudo: do juiz, da família burguesa, do jornalista, do policial, da justiça e mesmo da verborragia do réu. Se alguma verdade poderá ser tocada, será na leitura atenta do rosto abissal de Sabzian.
Cortázar nos inspira: “As máscaras… nós temos sempre a tendência de pensar nos rostos que elas escondem; na realidade, é a máscara que conta, que seja essa e não uma outra. Diga-me qual máscara você coloca e eu lhe direi que rosto você tem”. Para Kiarostami, cada rosto é ao mesmo tempo máscara e abismo. E o abismo, lembrou Nietzsche, se encarado por muito tempo, acaba nos encarando de volta. Talvez seja essa troca de olhares que nos propõe o cinema de Abbas Kiarostami.
Nota:
1 Citação entrevista Kiarostami (2004): Kiarostami, Abbas. Duas ou três coisas que sei de mim. In: Kiarostami, Abbas; Ishaghpour, Youssef. (Orgs.). Abbas Kiarostami. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 231.