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Eu vim construir meu barco

por Tamara Klink

Conheci o mar antes de saber o que ele era. Meu pai nos colocava para dormir contando histórias de ondas gigantes, frio polar, tempestades e bichos que nunca tinham visto gente. Sozinha, eu vencia as ondas, uma a uma. Tocava sua espuma branca, sentia frio, o vento construía o oceano no meu lençol.

Eram todas histórias reais. A profissão de navegador levava meu pai para muito longe ou muito perto por longos períodos. Minha mãe nos ensinou a ter orgulho da distância entre nós. “Meu pai não me trouxe para a escola porque está dando uma volta ao mundo”. E o mundo devia ser maior que todos os quarteirões que eu conhecia. Depois de oito meses, ele chegava do trabalho com histórias novas para alimentar nossas horas noturnas sem querer dormir.

Todo projeto dele envolvia nós todos. Brincava de esconde-esconde com minhas irmãs entre a calandra, as costelas, as chapas de alumínio no galpão onde meu pai construía um novo barco. Mudamos de casa para ficar perto do estaleiro. Vendemos nossa casa para comprar um mastro quando o barco foi para a água. A gente sempre soube que os projetos da nossa família valiam mais do que as coisas que a gente poderia querer ter. E estávamos certos de que podíamos acreditar uns nos outros.

Eu tinha oito anos quando minha mãe convenceu meu pai de que já éramos grandes o bastante para navegar com ele. Atravessamos o estreito de Drake comemorando os seis anos da Marininha, e chegamos à Antártica para nunca mais voltar iguais. Aprendi a manter um diário e entendi que minha história, mesmo curta, é poderosa. Conheci os cumes e vales das grandes ondas, as bochechas queimaram no frio, a tempestade estourou as amarras do nosso barco, e vi de perto as baleias jubarte e seus filhotes.

Secretamente, comecei a planejar uma expedição. Em um caderno, e com letra cursiva, listei os objetivos, tracei a rota, desenhei as possibilidades e ensaiei a apresentação. Pronta, num café da manhã, antes de ir para a escola, esperei meu pai acabar de ler o jornal e perguntei:

“Você me empresta o barco para eu ir para a Antártica sozinha?”

Não levou mais de dez segundos para ele responder que não. “Se você quiser viajar sozinha, terá que construir seu próprio barco”.

Anos depois, esse projeto me levaria para longe dele. Faz seis meses que vim para a França estudar arquitetura naval. Ser estrangeiro significa plantar sementes numa terra onde não se tem raiz. Em outro lado do mundo, a vida afronta nossos costumes e manias e denuncia o que é essencial. Troquei café por chá, descobri novos pratos preferidos, memorizei gírias locais, incluí um sotaque no meu nome, morri muitas vezes de saudade e conheci pessoas maravilhosas que perguntam por que eu estou aqui.

“Eu vim para construir meu barco.”

E sei que onda nenhuma fará o medo grande demais e frio nenhum vai me impedir de prosseguir porque eu ensaio cada passo inteira, e costuro, atenta, todos os pontos do meu caminho. As tempestades são previstas na viagem, e a dor da saudade servirá de treinamento. Dessa vez, sou eu que estou longe de casa, colecionando minhas próprias histórias para contar aos que ainda vão descobrir a força que tem amar o mar.


Texto originalmente publicado na edição O Estrangeiro

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