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Carnaval, a epopeia da comunidade serrana – Diálogos com a obra Serra, Serrinha, Serrano: O império do samba

por Priscila Carvalho

Em 23 de Março de 1947, na casa de Tia Eulália, situada à rua Balaiada, em Madureira, fora fundada uma das principais agremiações do carnaval carioca, o Império Serrano. A busca incessante por espaços onde a democracia, a liberdade e a coletividade fossem respeitados foi a motivação para que Sebastião de Oliveira, o Molequinho, e Elói Antero Dias, o Mano Elói, construíssem ali, naquele momento, as diretrizes que acompanham até hoje este então menino de 47. 

“Uma escola de samba” é o slogan do Império Serrano. Essa frase simples, porém, poderosa como a coroa imperial, traduz o empenho da comunidade em ensinar a arte do samba para os herdeiros do legado deixado por grandes mestres, tais como os já citados Mano Elói, Molequinho, Tia Eulália e outros tantos, como Vó Maria Joana, Tia Maria do Jongo, Silas de Oliveira, Wilson das Neves, Beto Sem Braço, Mano Décio e Dona Ivone Lara.

O antropólogo Roberto da Matta define o Carnaval como um ritual de inversão, uma alternância entre o cotidiano e o extraordinário. É na perspectiva dessa alternância, ou melhor, na concomitância entre estas duas realidades que Rachel e Suetônio Valença observaram e acompanharam de perto a trajetória do Império Serrano em todas as suas nuances: do dia a dia ao apogeu na avenida. Tais observações deram origem ao livro Serra, Serrinha, Serrano: o império do samba, publicado originalmente em 1981 e reeditado em 2017.

Rachel Valença esclarece que não escreve do lugar de pesquisadora. Sua escrita se dá a partir das experiências de uma imperiana apaixonada. Tão apaixonada que foi ritmista da bateria da escola, atuou como diretora cultural e como vice-presidente da agremiação. Sua posição durante a construção da obra foi o de coletora de grandes histórias e amplificadora das vozes de personagens importantes. Subvertendo a ordem do cânone acadêmico, quem ensina é o samba.

Exuberância e suntuosidade, marcas estéticas do reizinho de Madureira

Suntuosidade, grandeza, exuberância e até uma certa pompa são marcadores estéticos importantes quando contemplamos uma majestade como o Império Serrano. 

Roger Bastide (1945) descreve a arte barroca no Brasil como “mais do que uma arte para decorar igrejas, mas, antes de tudo, uma maneira de viver”. Vemos muito desse viver barroco nas narrativas desenvolvidas pela escola para a avenida, porém, também a testemunhamos no dia a dia, na devoção quase religiosa desta comunidade pelo seu território e pelo seu pavilhão.

A grandeza alinhada à riqueza de detalhes, característica da arte barroca, se faz presente no visual e na sonoridade da Sinfônica do Samba, como é conhecida a bateria imperiana. 

O músico Edgar do Agogô ampliou o instrumento de origem africana, que tem originalmente duas bocas, acrescentando mais duas, criando assim o Agogô de quatro bocas. Esta alteração trouxe a cadencia que se tornou a identidade sonora da escola.  

(Edgar do agogô – criador do agogô de 4 bocas)

Serra dos meus sonhos dourados, samba de Carlinhos Bem-Te-Vi é uma poesia de amor e exaltação, que carrega elementos clássicos da literatura barroca, tais como o cultismo, ou seja, a exploração das sensações e emoções. 

Rachel e Suetônio Valença fizeram importantes observações sobre a estética e as narrativas de epopeia presentes nas letras de Silas de Oliveira no capítulo A suntuosidade me acenava.

“Quero sentir nas asas do infinito
Minha imaginação
Eu e meu amigo Orfeu
Sedentos de orgia e desvario
Cantaremos em sonho
Os cinco bailes da história do Rio”

Cinco bailes da história do Rio, samba de 1965, reúne os mecanismos necessários para trazer ao público toda a exuberância pretendida pelos compositores. Além de um samba imponente, o desfile de 1965 levou para a avenida uma arte até então inédita: as alas coreografadas, com a pioneira ala Sente o Drama.

“Ao erguer a minha taça
Com euforia
Brindei aquela linda valsa
Já no amanhecer do dia
A suntuosidade me acenava
E alegremente sorria”

Aos verdadeiros heróis da liberdade

Ruptura com padrões autoritários, resistência e luta por direitos são características estruturantes para a construção da identidade do Império Serrano. Tais características estão fortemente presentes, também, nas histórias de suas grandes estrelas.

Silas de Oliveira, nascido em uma família evangélica, precisou se afastar dos pais religiosos para que pudesse se dedicar à sua arte, o samba. Outra história de luta por igualdade é a de Dona Ivone Lara, a mulher pioneira na assinatura de um samba enredo, tendo composto junto à Bacalhau e Silas de Oliveira o antológico samba Os cinco bailes da história do Rio.

Um incontestável marco no que diz respeito ao enfrentamento e ao posicionamento político no Império Serrano é o samba de 1969, Heróis da liberdade

Passava noite e vinha dia
O sangue do negro corria
Dia a dia

De lamento em lamento
De agonia em agonia
Ele pedia o fim da tirania

Lá em Vila Rica
Junto ao largo da Bica
Local da opressão
A fiel maçonaria com sabedoria
Deu sua decisão, lalala

Com flores e alegria
Veio a abolição
A independência laureada em seu brasão

Ao longe, soldados e tambores
Alunos e professores
Acompanhados de clarim
Cantavam assim

Já raiou a liberdade
A liberdade já raiou

Essa brisa que a juventude afaga
Essa chama
Que o ódio não apaga pelo universo
É a evolução em sua legítima razão

Samba, meu samba
Tem a sua primazia
Em gozar de felicidade
Samba, meu samba
Leva essa homenagem
Aos heróis da liberdade, oh

Liberdade senhor

Durante seu depoimento para o documentário Menino de 47 – A resistência do samba, Rachel Valença descreve Heróis da Liberdade como o marco do fim de uma era. Composição de Manoel Ferreira, Silas de Oliveira e Mano Décio, o samba foi o último de Silas e Décio a levar a escola para a avenida.

Para além da sua incontestável importância para a história da agremiação, Heróis da Liberdade traz ao protagonismo os verdadeiros heróis do Brasil, heróis estes negligenciados por aquela que conhecemos como a História oficial. Em plena Ditadura Militar, a escola, com sabedoria e coragem, levou para a avenida um grito por democracia.

Atualmente, ao final de todas as edições do Samba na Serrinha, evento que ocorre no centro Cultural Casa do Jongo, localizado à rua Compositor Silas de Oliveira, em Madureira, Heróis da Liberdade é entoado enquanto todos os presentes se dão as mãos numa grande roda. É como se o samba tomasse os moldes de uma oração.

Foto de Cris Vicente

Não me pergunte para que samba eu vou. Eu vou para o Império Serrano sim, senhor

Serra, Serrinha, Serrano: o império do samba é uma obra que revisita com emoção, cuidado e respeito a história do Império Serrano e das pessoas que fazem com que a alviverde de Madureira permaneça viva e dando frutos.  

Sua leitura nos envolve em uma viagem pelas origens da comunidade da Serrinha, origem essa que fala também sobre a construção social, política e geográfica dos subúrbios do Rio de Janeiro, reconhecendo as bases africanas que geraram, pariram e nutrem até hoje, dentre outras tantas coisas, muito do que temos de mais precioso em termos arte neste país, inclusive o samba, filho do Jongo.

O livro é também um tributo à fé do imperiano. Fé aos Orixás, expressa desde os jantares para os cachorros, passando pela fé em São Jorge, padroeiro da escola, chegando à fé devotada ao próprio Império e nas suas glórias. 

Como moradora de Madureira e vizinha do morro da Serrinha, posso dizer que viver aqui é respirar poesia e sonhar melodias, é honrar os bambas e é, acima de tudo, se emocionar ao ver nas crianças e jovens de hoje a continuação dos sonhos germinados lá em 1947. 

“A minha história já fala por mim
Sou resistência, orgulho sem fim
Tem poesia no ar, você já sabe quem sou
Pelo toque do agogô”