Telenovelas, simmm, temos!
Uma das manifestações culturais brasileiras mais festejadas são as telenovelas, um produto nacional que evidencia uma face positiva do país ao serem exportadas para mais de 170 nações do planeta.! Barrocas e antropofágicas por natureza apresentam tramas seriadas envolventes, vários núcleos imbricados, tragédia e comédia mescladas, dramaturgos talentosos e atores que transmitem credibilidade, beleza e expressão. A TV Globo é a grande produtora, seguida de longe (na maioria das décadas de atuação) pelas outras emissoras, não menos esforçadas em apresentar suas criações. Assim, tentarei mostrar alguns momentos desta trajetória que marcou um público tão fiel quanto crítico.
No ano de 1950, a televisão brasileira nasce como TV Tupi, pelo empreendimento visionário de Assis Chateaubriand, com apenas um aparelho de transmissão. Os técnicos e profissionais vinham do rádio e todos aprenderam empiricamente a como lidar com o novo meio eletrônico. É importante esclarecer que a tradição das radionovelas vem das narrativas folhetinescas dos jornais do século XIX, que acirravam a imaginação do público em torno do leitor. O público televisual, surpreendentemente, não se importava com a imagem aparente no monitor, cheia de interferências, chuviscos, linhas distorcidas, falhas, sem nitidez e muitos improvisos. Algumas produções foram memoráveis, apesar de algum som de galope se atrasar ou uma parede despencar de vez em quando. As cenas eram filmadas com a câmera grande, pesada, centralizada e imóvel como sendo a plateia do teatro.
O governo Juscelino Kubitschek, na década de 1960, trouxe um grande impulso à mídia eletrônica e impressa como parte do processo de “popularização” do novo meio televisual, tornando-o economicamente acessível. Foi nesse período que a TV Excelsior e a Record surgiram. Também houve a introdução do videoteipe, tecnologia que possibilitava inovações como: a gravação e a apresentação em lugares diferentes ao mesmo tempo; a saída para cenas externas, que traziam mais verossimilhança à trama; e, principalmente, o fim dos improvisos, todos podiam estar bem preparados. Desta forma, a grade de programação se estabilizou e deu lugar à telenovela. Direito de Nascer (1964), de autoria de Thalma de Oliveira e Teixeira Filho, causou a primeira comoção nacional, e foi inspirada na radionovela cubana de Félix Caignet. O último capítulo foi transmitido no Ginásio do Ibirapuera (SP) e no Maracanãzinho (RJ) para milhares de pessoas mobilizadas.! Como não recordar Albertinho Limonta, Isabel Cristina e Mamãe Dolores, para quem os assistiu um dia?
Não podemos esquecer o Golpe Militar de 1964, que redirecionou o país e gerou a mudança dos meios de comunicação. Em 1965, foi criada a Embratel que ampliou a transmissão simultânea dos programas em todo o território nacional. Bem como a inauguração da TV Globo, com o aporte do capital estrangeiro do grupo Time-Life, causando um estremecimento nas outras emissoras e evidenciando a hegemonia do eixo Rio-São Paulo.
Até então, permaneciam os textos adaptados de produções cubanas ou mexicanas, contudo, em 1968, surge uma telenovela renovadora de toda a dramaturgia de heróis maniqueístas e fórmulas esgotadas.! Beto Rockfeller, lançada pela TV Tupi (SP), concebida por Cassiano Gabus Mendes, Bráulio Pedroso e Lima Duarte, revolucionou a televisão e os lares brasileiros. E como aconteceu isso?
Voltando um pouco ao Barroco (séc. XVI), uma das características desse período foi a humanização dos personagens sacros impostos pela Igreja. O talento por trás desse processo foi o pintor Caravaggio, que utilizou como modelos os seus vizinhos, as prostitutas, o açougueiro ou o carroceiro da esquina para figurar os mártires da saga católica. Ele também criou uma forma de pintar mais próxima do natural, com mais contraste e drama, conhecida como “claro-escuro”. Traçando um paralelo com as telenovelas, tínhamos tramas “externas” à nossa cultura e em Beto Rockfeller foram adaptadas ao meio urbano da nossa classe média. O ator Luiz Gustavo protagonizou o anti-herói simpático e malandro, junto à Débora Duarte e Bete Mendes que ora sofriam, ora acertavam, ora erravam, projetando rapazes e moças comuns, humanizando a interpretação com naturalidade. Ainda nesse período, a Globo alojava Janete Clair, que não somente emplacou dezesseis telenovelas na emissora, como teve audiências altíssimas, na década de 1970, como Irmãos Coragem (1970), Selva de Pedra (1973), Pecado Capital (1975) ou O Astro (1978). Sucessos justificados da autora, que sabia apelar ao gosto popular ao mostrar núcleos de todas as classes sociais com autenticidade e dramas legítimos da alma humana entre o Bem e o Mal – elementos representados pelo período Barroco com o contraste drástico entre as cores claras (o Bem) e as escuras (o Mal).
As cores chegam aos monitores na década de 1970. O Bem-Amado (1973), de Dias Gomes, era uma sátira inteligente que criticava o regime militar através de coronéis do sertão baiano, que cometiam qualquer tramoia para permanecer no poder. E inaugura a fase das exportações da emissora. Só fica a dúvida de como traduzem o vocabulário peculiar de Odorico Paraguassú, quando diz: “depoismente”! Barroquíssimo!
Nesse período, ainda, foi implantado o “padrão Globo de qualidade” e a ampliação da Rede Globo no Brasil. Outro produto exportado é Gabriela (1976), de Walter George Durst. Baseada no romance de Jorge Amado, exaltava a cultura baiana com a morenice e a sensualidade de Sônia Braga.
Mesmo com tantos percalços, a década se encerra com a consagração do, recentemente falecido, Gilberto Braga. Escrava Isaura (1976) foi a novela que atravessou a Cortina de Ferro e chegou à África e à Ásia! Já Dancin’ Days (1978) foi uma febre que lançou itens de moda assinados por Marília Carneiro, como as meias Lurex com sandálias de salto alto. A trama era a rivalidade das irmãs pelo amor de Marisa, filha de Júlia e criada por Yolanda, resultando em que um sucesso absoluto em mais dearrebatou mais de 80 países. Memorável!
No ano de 1981, Sílvio Santos ganhou a concessão do Sistema Brasileiro de Televisão. Em 1982, passou a produzir obras adaptadas de telenovelas mexicanas, e recentemente, se tornou a quarta maior produtora de telenovelas da América Latina. Em 1983, surge a TV Manchete. Já a Globo simboliza o fim da Ditadura Militar e o início da Nova República com Roque Santeiro (1985), telenovela censurada anos antes, que foi reescrita por Dias Gomes, Aguinaldo Silva e Marcílio Moraes, e foi comprada por dezenas de países. A revista Veja, em 2016, a considerou a terceira melhor telenovela do Brasil. Quem não se apaixonou pelos personagens Viúva Porcina (Regina Duarte) e Sinhozinho Malta (Lima Duarte) exageradamente barrocos?
Porém, a instituição das maiores vilãs de todos os tempos foi introduzida por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, com a criação de Vale Tudo (1988), considerada a segunda melhor produção seriada do país, pela mesma revista Veja. Odete Roitman, que arquitetava as piores maldades, e Maria de Fátima, que além de roubar sua mãe, a renegava com todas as forças, são odiadas por todos até hoje. O assassinato de Roitman tomou a primeira página de jornais no dia de seu último capítulo, quando seria revelada a autoria do crime guardada como segredo de investigação do FBI.!
Mas, nem tudo foram flores para a Globo… O verdadeiro tombo pela audiência foi com o lançamento de Pantanal (1990), de Benedito Ruy Barbosa na década seguinte, pela TV Manchete. Essa foi eleita a quarta melhor telenovela pela Veja (2016). A narrativa cinematográfica com longas tomadas da região pantaneira, ritmo lento e contemplativo, cenas de nudez e erotismo na natureza com afeto e vinculadas à trama amorosa, formaram a receita para a liderança da emissora mais nova. O fenômeno foi a coincidência com o Ano Internacional do Meio Ambiente, inaugurando a exaltação da consciência ecológica e do turismo na região Centro-Oeste. Juma Marruá virou um mito ao se transformar em onça pintada no imaginário do país.!
Todavia, a Globo, rapidamente, toma a frente com a inauguração do complexo cenográfico Projac (1995), onde passou a realizar toda a sorte de obras seriadas. Foi a década de introdução da tecnologia digital e da sofisticação das produções. Ao final da década e ao longo da seguinte, tivemos uma trilogia única: Terra Nostra (1999) e Esperança (2002), de Benedito Ruy Barbosa, e Passione (2010), de Silvio de Abreu. Obras de muito sucesso ao retratarem o desenvolvimento da colonização italiana aqui e as relações culturais entre os dois países: Brasil e Itália. Assim como Caminho das Índias (2009), de Glória Perez, contemplou a influência indiana no território nacional, e também teve ótimo desempenho na exportação.
E a produção mais bem-sucedida aqui e no exterior: Avenida Brasil (2012), de João Emanuel Carneiro. Considerada pela revista Forbes um fenômeno da televisão mundial, foi dublada para 19 idiomas. Todo o enredo gira em torno da vingança de Rita/Nina, que foi abandonada no lixão, um mundo nunca antes revelado na ficção televisual, pela madrasta Carminha. Na mesma novela, a classe dos emergentes foi retratada em todas as nuances. Espirais de relacionamentos enredam os personagens até o final, rendendo prêmios de melhores atores aos protagonistas pelas suas interpretações. E Carminha passa à galeria das vilãs adoradas por todos. Uma vilã multifacetada, manipuladora, mega-ambiciosa e ultrabarroca.!
Mas, ao considerar a última década, com o incremento das mídias digitais, a implementação dos streamings e lives, da onda de séries e da pandemia, que perdura há 2 anos, percebemos mudanças significativas na televisão aberta. Sem dúvida a concorrência por lazer está muito maior… A queda dos níveis de audiência foi vertiginosa, caindo até 50%, porém longe de ser uma ameaça às telenovelas.! É uma reviravolta semelhante ao surgimento do rádio em relação ao teatro, ou da própria televisão em relação ao rádio. O teatro continua firme, assim como o rádio e a televisão continuarão convivendo com os meios digitais. O custo de novas tecnologias, a extensão do nosso território e o poder aquisitivo da população… Ao pesar esses fatores, concluímos que as telenovelas abrangem grande parte do país, promovem uma troca riquíssima em termos de classes e cultura entre elas e, assim, lideram a preferência do público.
Os “baixos índices de audiência” abrangem centenas de milhares de telespectadores, que revelam o potencial de amplitude do poder televisual, em comparação a outras mídias ou manifestações culturais, conforme alerta Arlindo Machado em seu livro A televisão levada a sério (2014).
Se analisarmos as pontuações, a Globo ainda representa aproximadamente o dobro do IBOPE diário da Record, com suas narrativas bíblicas, que, por sua vez, indica aproximadamente o dobro do SBT, com as adaptações mexicanas, salvo raras exceções, como as transmissões de jogos de futebol.
Dessa forma, o Brasil tem liderado a categoria seriada ao longo das décadas, fato que não descarta flutuações e trocas de posicionamento nos rankings de audiência ou mesmo de mídias. A inventividade brasileira tem sido prestigiada e celebrada ao mostrar tão bem a classe média, os sertões, o Pantanal, as imigrações, a vida no lixão ou a classe emergente em todo o mundo. E tudo isso, graças a nossa barroquice institucionalizada.