A guerra das narrativas, o contexto histórico e os debates na pós-modernidade, o epistemicídio, o silêncio, a invisibilidade e o apagamento. P. Palavras que andam sempre em conjunto quando o assunto é a descolonização.
Estamos no tempo presente, e meu recorte propõe, através da máquina do tempo que aqui é a escrita, levar o leitor e a leitora às linhas transtemporais do passado, nas confluências de Afromodernismo Brasileiro, Arte Negra Contemporânea, Arte Negra Pós-Moderna, Afropresentismo e Afrofuturismo.
Por meio desta máquina vou tecer um recorte específico: a Semana de Arte Moderna Negra. Afinal, a palavra como registro é história, e a história é a visibilidade tangível entre a ficção e a realidade — ou seja, Afrofuturalidades, “juntas ou separadas, coexistindo e tendo como relação principal a produção de linhas temporais e multiversos. Em duas dimensões: na realidade e na ficção, e na construção de futuros reais ou ficcionais”. Na realidade desta confabulação, pergunto: o que seria do discurso de modernidade sem a presença de registros históricos sobre africanos e afrodescendentes em arte, ciência e tecnologia, na construção de um discurso de universalidade? O que hoje significa a apropriação que invisibiliza, deturpa e cria um universalismo abstrato sobre a modernidade?
Não concorda com meu pensamento? Bom, estou aqui para te provocar a pensar, então para isso relaciono alguns registros históricos da África: a matemática; o fractal africano; Sona; o Osso de Ishango; Odu Ifá – o criptograma de 0 e 1; Kitembu, o tempo; o cosmograma bacongo e a calunga; Nabta Playa, o primeiro sítio arqueoastronômico; jogos de mancala; a Pedra de Roseta; os adincras… De onde vêm essas memórias há muito mais.
Toda a tecnologia, a ciência, a arte e os demais conceitos das modernidades oriundos da pioneira cultura africana atravessaram o Atlântico junto a homens e mulheres forçadamente escravizados num processo histórico desumano, pessoas cuja sobrevivência esteve condicionada a preservar laços com o sincretismo, com a oralidade e com a sabedoria ancestral de sua história — história esta apropriada culturalmente, cientificamente e tecnicamente. Até o objeto mais pós-moderno que uso neste momento para digitar, conhecido como computador, remonta à África, afinal a tecnologia de mineração do ouro é conhecimento africano, e sem ouro um computador ou dispositivo móvel nem sequer liga. Muitas inquietações, não é?
Vamos apertar um botão de nossa máquina do tempo e chegar a 13 de fevereiro de 1922, em um Brasil que se consolidou nas lutas abolicionistas, um país em que populações originárias, africanas e afrodescendentes confluíram seus direitos de autonomia, sociedade, autoria, liberdade, cultura, tradição, política, economia e ancestralidade como justiça social oriunda da escravidão forçada. Nesse cenário, os povos afrodescendentes decidiram se reunir para visibilizar a modernidade na arte negra, afinal estão com o tempo focado para tal, tendo em vista a realidade de justiça social que vivem nessa confabulação em 1922. O ponto de partida para a Semana de Arte Moderna Negra no Brasil, de 1922, foi o ano de 1910 (viajamos novamente), com a renovação artística negra baseada em três conceitos: a literatura antiescravista; a ciência geodésica, por meio dos estudos e desenhos gravitacionais das regiões brasileiras; e a pintura, por intermédio das cenas em movimento.
Na literatura, a referência principal é a escritora Maria Firmina dos Reis, que em sua obra antirracista humanizava a história de africanos e afrodescendentes em situação de escravidão. Como mulher negra, Maria Firmina também se tornou uma referência histórica. A seu lado na literatura, Lima Barreto, com sua presença efetiva na Academia Brasileira de Letras, popularizou a crítica social literária do antiescravismo.
Nas artes visuais, destaque para o pintor e decorador Artur Timóteo, que propôs o movimento como uma relação da afrocentralidade figurativa, em um fluxo contínuo de temporalidade imagética.
Já na ciência, o protagonismo negro se deu por intermédio da primeira base geodésica do País, desenhada pelo grande Teodoro Sampaio, geógrafo, engenheiro, escritor e historiador brasileiro que trabalhou no Museu Nacional.
Inspirada por essas influências renovadoras que não apagavam o passado, pautavam o antiescravismo, recuperavam as memórias ancestrais, promoviam justiças sociais e se direcionavam ao futuro, em 1921, após conquistar medalha de ouro na disputa de cantoras do Instituto Nacional de Música, a cantora Zaira de Oliveira ganhou uma viagem à Europa para acompanhar os artistas afro-europeus que estavam recuperando e devolvendo para a África os bronzes do Benim, as máscaras de Tchokwe e os inquices indevidamente alojados em museus europeus. No mesmo período, pôde acompanhar a devolução de importantes referências históricas da América Latina, especificamente de povos originários. De lá, Zaira foi para os Estados Unidos encontrar seus amigos vanguardistas do Renascimento do Harlem, entre eles a escultora Augusta Savage, que a convidou a criar uma ficção sônica sobre suas obras. Após conversar em um jantar com W.E.B. Du Bois e Marcus Garvey sobre o Pan-Africanismo, decidiu ir à África conhecer o rei da Etiópia, Haile Selassie, que conduzia com êxito o único país africano não colonizado.
Motivada por tanta consciência mítica afrocêntrica, Zaira voltou para o Brasil em 1922 e, com o esposo Donga, responsável pela gravação do primeiro samba brasileiro, decidiu ocupar o Theatro Municipal de São Paulo e realizar a Semana de Arte Moderna Negra, em uma perspectiva afro-brasileira da ancestralidade, das africanidades, do antiescravismo e do antieugenismo, reverberando a arte, a ciência e a tecnologia africanas e afrodescendentes.
Reuniram-se no Theatro Municipal as comunidades quilombolas brasileiras, os clubes negros, as congadas, os jongos, os terreiros de candomblé, a Mãe Menininha do Gantois, o psiquiatra Juliano Moreira, os artistas visuais Teodoro Sampaio, Arthur Timóteo, Benedito José Tobias, Heitor dos Prazeres e João Timóteo da Costa, entre outros grandes nomes, em uma cosmovisão afro-brasileira.
Foi a semana que revolucionou a arte brasileira e confluiu desmembramentos culturais, artísticos, tecnológicos e científicos em vários ciclos, e essas experiências foram passando por gerações. Aqui calibro a máquina do tempo transtemporal para 1945, quando Enedina Alves — que na infância assistiu a toda a programação da Semana — se formou em engenharia. Também aponto a máquina transtempo para a produção artística de Rubens Valentim, como experiência dessa convergência estética que viveu na infância em 1922, e também para os clubes negros dos anos 1960.
Já nivelo esta máquina temporal para te levar ao Museu de Arte Negra de Abdias do Nascimento e ainda elucido sua potencialidade na confluência da revolução cultural, científica e tecnológica, assim como o “Quilombismo”. Achego a máquina transtempo para 1970, os bailes Black Power, o Cinema Negro. Da mesma forma para “Amerifricanidades” e o pretoguês da mineira Lélia Gonzalez, que também foi uma das fundadoras do Olodum; para as ““teorias críticas” da filósofa Sueli Carneiro; para o “Tempo Espiralar” de Leda Maria Martins; para as geografias afrocentradas de Milton Santos; para a física aplicada das cientistas Sônia Guimarães e Zélia Ludwig.
E aconchego esta máquina do tempo transtemporal no Quilombo do Ciberespaço, que faz sua vocalização no agora como um tempo confabulado no contratempo da reexistência histórica na manutenção de nossas ancestralidades como a proporção da pós-modernidade negra na confluência do agora e do amanhã.
Toda a história africana e afrodescendente de arte, ciência e tecnologia são é real, assim como as personalidades negras citadas aqui também o são. Viajamos por vários lugares, não é? Esse é o transtemporal das Afrofuturalidades, a Sankofa do “volte e pegue”, nas linhas do tempo do pensamento. O Afrofuturismo Brasileiro se insere nessa história, sendo “arte, ciência, tecnologia e inovação africana e afrodescendente. Especificamente, o que foi negado historicamente, a participação e a presença de africanos e afrodescendentes na construção do conhecimento ‘universal’. Os desdobramentos conceituais são fundamentais às relações com a temporalidade (passado, presente e futuro, ou a transtemporalidade), bem como a busca pela afrocentralidade e sua forte relação com o ciberespaço (as transições da globalização, o processo crítico a esta, ao mesmo tempo que a facilidade ao acesso de informações sobre o continente africano e suas narrativas históricas em conexão com suas relações na diáspora, dependendo de uma pesquisa em bancos de dados de sistemas de aprendizado).”
Fiz um documentário com ficção/realidade na sua mente. Entendeu por que precisamos das Afrofuturalidades, do Afrofuturismo, do Afropresentismo e do Africano Futurismo na educação do quilombo pós-moderno que está dentro e fora do ciberespaço?