Aquilo que é visto socialmente como lixo, para muitos é subsídio de sobrevivência ou criação artística. Impulsionados pela grande crise argentina de 2001, quando a pobreza e o desemprego atingiram patamares nunca vistos naquele país, o escritor Washington Cucurto e os artistas visuais Javier Barilaro e Fernanda Laguna criaram em 2003 o projeto Eloísa Cartonera. Em meio a um cenário no qual inúmeros argentinos saíram às ruas para recolher papelão e outros materiais descartados, Eloísa Cartonera iniciou uma editora de livros com capas feitas de papelão coletado, vendidos a preços populares.
Eloísa Cartonera tem como política a aquisição do papelão diretamente de cartoneros/as — em português catadores/as — por um preço superior ao que seria pago pelo posto de coleta, a fim de transformá-lo em livros de poesia, contos, drama, literatura infantil, novelas e peças de teatro. As capas são pintadas à mão, uma a uma, tornando cada livro único. Os/as cartoneros/as, além de serem responsáveis pela matéria-prima do trabalho, são incentivados/as a pintar as capas e a criar seus próprios livros.
Em um país com uma economia dilacerada, Eloísa Cartonera insurgiu da destruição enquanto potência ativa para a vida. Uma potência que se alastrou mundo afora, chegando hoje a cerca de 300 Cartoneras situadas sobretudo na América Latina. Cabe mencionar que muitos desses coletivos editoriais funcionam de forma intermitente, sendo que aproximadamente dois terços do total se encontram em plena atividade.
No Brasil, o primeiro projeto de uma editora Cartonera foi iniciado em 2007 com o nome de Dulcinéia Catadora, após dois meses de trabalho colaborativo entre a artista e escritora Lúcia Rosa, o catador Peterson Emboava, que atualmente trabalha como fotógrafo, come integrantes do Eloísa Cartonera, durante a 27ª Bienal de São Paulo. Diferentemente dos demais coletivos, que seguem a se nomear por um nome próprio, geralmente feminino, acompanhado de “Cartonera”, Dulcinéia Catadora adota a tradução do espanhol para a língua portuguesa, a fim de trazer maior identificação com os membros do grupo.
Desde 2010, Dulcinéia Catadora tem como base de trabalho a Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis do Glicério (CooperGlicério), localizada embaixo do viaduto Paulo VI, na região da Sé, centro de São Paulo. O projeto se destaca entre as Cartoneras por realizar todo o processo editorial dentro de uma cooperativa e ter catadoras como a maioria de seus integrantes. Outro diferencial é a publicação de livros de artistas. Entre os autores publicados estão escritores como Plínio Marcos, Alice Ruiz e Manoel de Barros e artistas como Fabio Morais, Lúcia M. Loeb, Paulo Bruscky, Elida Tessler, Roger Colom e Thiago Honório, além das próprias integrantes do coletivo.
Grande parte do conteúdo dos livros publicados por Dulcinéia Catadora, como em muitas outras editoras Cartoneras, tem seus direitos cedidos por seus autores, que ganham 10% dos livros feitos,; de forma que isso também corrobora para que seu valor comercial siga muito abaixo do mercado. É certo afirmar que os livros de artistas são vendidos a preços irrisórios, ainda mais quando comparados aos valores comercializados pelas galerias de arte. “Isto é, o livro leva uma capa de papelão, muitas vezes apresentando conteúdo contestatório. Há a finalidade de ser acessível, pois queremos alcançar a maior quantidade possível de pessoas. O livro não foi feito para entrar no circuito da arte, para pertencer a colecionadores. Não é essa a intenção”, comenta Lúcia Rosa.
Sem passar por nenhuma mediação, os livros são vendidos em feiras de impressos ou diretamente, por membros da Dulcinéia Catadora. O valor das vendas é essencial para a complementação de renda dos/as catadores/as. Atualmente, o projeto tem participação ativa de Andreia Emboava, Maria Dias da Costa, Eminéia dos Santos, Maria Silva e Ágata Emboava, que trabalham diariamente na reciclagem, e Lúcia Rosa. De 2007 até hoje, foram publicados 142 títulos, com tiragem média, de 50 a 100 unidades. Por alto, o projeto já vendeu mais de 15 mil livros, a maioria deles a 15 reais.
Além de publicar livros, Dulcinéia Catadora trabalha com outras linguagens artísticas, como, por exemplo, performance, instalação e instalação urbana. Já realizou projetos no SESC Pompeia e na Casa das Rosas, em São Paulo, bem como participou de coletivas no Museu de Arte do Rio (MAR); Museu Brasileiro da Escultura e da Ecologia (MuBE), em São Paulo; Casa do Povo, também na capital paulista; Museu Murillo La Greca, em Recife; e Museu de Arte Contemporânea de Niterói, entre outros. Em 2018, Dulcinéia Catadora participou do projeto Cartonera Publishing, e seus livros, encontrados em inúmeras bibliotecas dos Estados Unidos e de outros países, passaram a integrar o acervo das bibliotecas de Londres e Cambridge, na Inglaterra. É importante ressaltar que não apenas os trabalhos do coletivo circulam por esses espaços, mas também seus membros.
Concomitantemente à produção editorial e artística, temos uma atuação das Cartoneras na área de educação e formação de novos coletivos. Da mesma forma que o coletivo paulista surgiu após um trabalho colaborativo com Eloísa Cartonera, muitos grupos — como Catapoesia (MG), Severina Catadora e Mariposa Cartonera (PE) e Kuvaninga (Maputo, Moçambique) — foram criados após oficinas ministradas por Dulcinéia Catadora. Assim como sugere Walter Benjamin no ensaio O autor como produtor (1934), a lógica Cartonera faz com que catadores/as se tornem produtores/as de novos/as autores/as catadores/as e autores/as de sua própria obra literária e de arte.
Notam-se, então, alguns “desvios” desencadeados por aquele papelão que em um primeiro momento é lido de forma equivocada e simplista como lixo: 1) papelão descartado entra para o circuito da literatura e das artes visuais; 2) os/as catadores/as atuam como artistas, escritores/as, editores/as e oficineiros/as; 3) os livros são vendidos por valores acessíveis; 4) o projeto gera renda para uma das classes mais vulneráveis de trabalhadores autônomos; 5) os/as catadores/as circulam por ambientes previamente negados à sua condição social; 6) é construído um ciclo de emancipação da produção, em que o/a autor/a é produtor/a de novos/as autores/as.
Por fim, “para além de forjar trilhas alternativas que veiculam a produção literária contemporânea, absorvendo escritores não inseridos no mercado editorial”, como menciona Lúcia Rosa, é lindo ver como as Cartoneras conseguem transformar a destruição em arte e potência de vida.