Yushi Li: recriar é mais do que inverter
Hoje, mais do que nunca, muito se escreve sobre a predominância da perspectiva masculina nos protótipos artísticos de qualquer sociedade, especialmente sobre como isso faz com que se normalize a representação flanqueada da mulher como um tema subjacente, sendo raramente tomada como foco. Não chega a ser necessária uma análise mais detalhada para nos depararmos com imagens de homens fazendo acontecer, no auge do estoicismo, e imagens de mulheres… aparecendo. A noção, afinal, está disseminada por toda a cultura visual que conhecemos — mas, por mais enraizada que esteja a questão, plantar uma nova narrativa é sempre possível e, onde quer que aconteça, representa o ensejo de uma nova semeadura.
Prova disso é a artista Yushi Li, nascida na província de Hunan e hoje uma moradora de Londres, que se descreve como uma “mulher chinesa que tira fotos de homens ocidentais nus”. Para a fotógrafa, o interesse em se debruçar sobre a questão dos olhares masculino-femininos e dos corpos de desejo começou com sua série My Tinder Boys(2018). Tirando inspiração de imagens de mulheres posando eroticamente com comida, foi à cata de homens no Tinder para, com eles, parodiar esses registros gastro-eróticos, misturando o modus operandi dos usuários do aplicativo ao seu propósito final de questionamento à dicotomia de gêneros. No processo, começou a investigar mais a fundo a dinâmica de poder inerente às relações do olhar através do trabalho de diferentes teóricos.
Entre os materiais estudados, o que mais lhe causou impacto foi o clássico programa de 4 episódios da BBC, transformado pouco depois em um livro homônimo, Ways of Seeing (1972), escrito e apresentado pelo crítico de arte John Berger. Para além do objetivo da série, cujo epicentro era a explicação esmiuçada e acessível de conceitos que esclarecem o porquê de nossas experiências visuais nunca serem puras, Berger serviu de base para muitas argumentações feministas surgidas a posteriori — sendo a mais notável de Laura Mulvey, que elaborou forte crítica às representações tradicionais da personagem feminina no cinema. Tal influência se deu devido, em especial, ao segundo episódio de Ways of Seeing, em que, a partir de pinturas de séculos passados, o crítico-teórico demonstra com maestria como as mulheres são cruelmente treinadas para se tornarem o objeto passivo do olhar masculino.
Essa é uma das chaves para se entender os caminhos que Yushi Li seguiu depois de My Tinder Boys. Por serem provocações que oferecem alternativas ao binarismo, rompendo a ideia do olhar “masculino” ou “feminino”, com essas fotografias coloca-se em cima da mesa não apenas novas maneiras de se olhar para um determinado tema, mas novas maneiras pelas quais esses temas são vistos. É um desafio à representação clássica de homens ativos e mulheres passivas, objetificadas amiúde na história da arte. Em muitas pinturas a óleo europeias, sobretudo as de nus femininos, podemos ver que há uma engessada e irreparável dinâmica de gênero que faz da mulher nua a personificação do desejo erótico do espectador masculino.
Em Paintings, Dreams and Love (2018 – 2020), Yushi Li pega essa lógica para desconstruí-la e dobrar suas pontas — a série propõe uma releitura, com intensa presença da atualidade, de cenas de pinturas clássicas nas quais, na maioria das vezes, as pessoas do sexo feminino são retratadas em posição de subserviência. Nas imagens da artista, estoura em nossa cara mais do que os papéis trocados: vemos um novo traje de representação corporal, uma camada pubescente que berra erotismo, poder e transformação. Na pintura O pesadelo (1781), de Johann Heinrich Füssli, num plano central temos uma figura feminina deitada com tanta dramaticidade quanta sexualidade, uma fusão que troveja pathos; num plano acima, tomado por sombras, vemos um ímpio (figura herege da Bíblia) e um cavalo, que, presume-se, sejam ilustrativos do sonho que acomete aquela mulher extremamente responsiva a esse mundo onírico masculinizado. Na recriação de Yushi Li, o homem vira a figura feminina, com as mãos quase tocando uma extensão de tomada, e a própria autora vira o ímpio, tomando para si o papel de domínio: mais do que papéis trocados, uma reflexão sobre os olhares que definem as temáticas.
Algo similar acontece com a releitura de A morte de Acteon (séc. XVI), de Ticiano — Yushi Li apropria-se do papel de Diana e caça por si só o homem nu.
Com O Sonho da Mulher Pescadora (2018), recriação da xilogravura O Sonho da Mulher do Pescador (1814), de Katsushika Hokusai, a fotógrafa mostra toda sua força sem sequer dar as caras. Opta por uma montagem que conta com somente uma figura humana, subtraindo-se fisicamente da representação, mas deixando ali o seu olhar mais presente do que qualquer outro elemento do registro.
Nos famosos ensaios de Ways of Seeing, John Berger escreveu: “Homens olham para mulheres; as mulheres se vêem sendo observadas. Isso determina não só a maioria das relações entre homens e mulheres, mas também a relação das mulheres consigo mesmas. O inspetor da mulher, contido nela mesma, é masculino: a mulher é sempre fiscalizada. Assim, ela se transforma em um objeto — e, mais particularmente, um objeto para ser visto”.
Ao assumir no seu trabalho um modo ativo, no lugar de simplesmente inverter os papéis de gênero, a fotógrafa intervém nas representações do desejo erótico que conhecemos, colocando o dedo nas feridas tão abertas e espalhadas pelos corpos sociais e pessoais.
Dentro das próprias regras, Yushi Li encontrou a temática de si mesma.