Karla Tenório e filha em cena de “Eu deveria estar feliz”. Foto: divulgação
CinemaSociedade

Eu deveria estar feliz: depressão pós-parto e os desafios da maternidade

Falar sobre depressão pós-parto é sempre um desafio. Não importa quantos anos vêm e vão, não importa o quanto tenhamos avançado em alguns debates sociais — essa ainda é uma doença tabu. Eis a braveza de Eu deveria estar feliz, um filme que segue a jornada de quatro mães que viveram depressão pós-parto e que, a duras penas, conseguiram superá-la através do afeto. O documentário de Claudia Priscilla aborda a questão de maneira franca, entrelaçando as realidades de mulheres que compartilham as suas experiências sem medo de dosar verdades ou manifestar qualquer vulnerabilidade. Cada uma delas viveu um processo íntimo distinto para se curar, com durações e características muito próprias. Talvez não haja uma fórmula propriamente dita para enfrentar uma crise dessas, mas o apoio das redes de afeto, a espiritualidade e a ajuda médica parecem ser imprescindíveis. Mesmo que uma em cada quatro mães no Brasil sofram pela doença, tratar do assunto é ter que se rebelar contra o caráter retrógrado intrínseco da sociedade, que parece incapaz de se desfazer de um corpo de ideias ultrapassado sobre maternidade.

Karla Tenório e filha em cena de “Eu deveria estar feliz”. Foto: divulgação

É um alívio, portanto, para todos nós, ver um documentário mergulhar no tão complexo universo do tema e de todas as possibilidades de cura. 

O filme lida com a dor, é verdade, mas, acima de tudo, é um estudo sobre as especificidades do amor, de como as relações humanas não são — e nem deveriam — ser simples ou unidirecionais. Claudia Priscilla conduz tudo no máximo da intimidade, compreendendo que a maternidade é uma experiência radical que inevitavelmente move as pessoas para um novo lugar e também se debruçando sobre o quão difícil pode ser se reconhecer depois desse rol de rupturas. É uma celebração não espalhafatosa (no melhor sentido) de quem essas mulheres realmente são e, consequentemente, das pessoas que existem por trás de cada mãe do Brasil e do mundo. No fim, o processo de reconstrução que se segue à depressão pós-parto é turvo e não linear. A materialidade de ser mãe tem o poder de fazer renascer, mas, para tanto, também precisa morrer em outros lugares.

Das quatro mães de Eu deveria estar feliz, temos Lorena Nonato de Oliveira, que é professora e doula. Sempre quis ser mãe, mas não no momento em que engravidou, quando estava noiva e cursando Engenharia. Logo que voltou para casa com seu bebê, passando os dias na cama, começou a questionar a relação com sua família, sua religião e sua profissão. Decidiu fazer um curso de doula e se descobriu na enfermagem obstétrica. Barbara Tupinikim, outra personagem, é engenheira florestal. Para ela, o grande baque foi o parto. Teve o filho no hospital e ficou muito tempo em trabalho de parto, tendo que optar pela cesariana. A recuperação da cirurgia foi pesarosa e, entre a felicidade de estar com o filho e a tristeza que sentia, foi difícil assimilar tudo. Na primeira semana em casa, se deu conta de sua depressão. Durante esse processo, ficou cuidando de plantas medicinais, atividade que deu início ao seu processo de cura. 

Lorena Nonato de Oliveira em cena de “Eu deveria estar feliz”. Foto: Divulgação

Temos também Fernanda Corrêa Laham, arquiteta. A segunda gravidez foi bem diferente da primeira: teve que fazer cesariana. Quando levaram o bebê para fazer os primeiros procedimentos, começou a rezar, com medo de que houvesse algum problema. A partir daí, Fernanda desenvolveu um comportamento que as pessoas no geral não esperariam de uma depressão pós parto: desenvolveu uma relação simbiótica com o filho, não se permitindo estar longe dele. Já Karla Tenório é atriz. Sua gravidez foi desejada e planejada. O parto natural foi em sua casa, acompanhado de uma doula. Tudo estava dentro do esperado — exceto pela surpresa de que, depois de tudo, ela não estava feliz. Aliás, muito pelo contrário. Todos em volta achavam que ela estava dando conta de tudo, porque ela de fato vinha atuando como se fosse a mãe perfeita, mas nada cessava o sentimento de vazio. Considera que começou a melhorar depois de quatro ou cinco anos, ao chegar à conclusão de que a culpa de sua tristeza não era de sua filha. 

Os quatro casos ajudam a exemplificar a amplitude de reverberações tanto da depressão pós-parto quanto da maternidade e dos caminhos de cicatrização. Ao contrário do que ainda acreditam muitas pessoas, são inúmeras variáveis e, infelizmente, a sociedade joga uma culpa cruel nessas mães. É como diz Karla: “A culpa não é dos filhos e sim da construção social e da maternidade compulsória, que também faz parte da construção social.” E ter alguém dizendo isso em voz alta carrega um quê de revolução.

A narrativa de Eu deveria estar feliz segue a toada empática característica da obra de Claudia Priscilla, já expressa em trabalhos anteriores de sucesso, como Bixa Travesti. Confira nossa conversa com a cineasta:

A maternidade, enquanto construção social, pode ser um fardo. Você vê como proposta do filme apresentar a ideia simples, mas revolucionária, de uma maternidade não tão idealizada?

CP: Eu acho que um dos pontos importantes do filme é falar justamente desse lugar da idealização da maternidade e da importância da desconstrução desse papel social que aparece num certo momento, numa certa cultura. E, junto com isso, desconstruir a maternidade compulsória que é esse sentimento, essa ideia de que a mulher é completa quando a mulher é mãe. Então, acho que é extremamente necessário tocar nesse assunto, porque o tempo inteiro existe essa romantização da gravidez, do parto, e poucas pessoas trazem abertamente essa experiência na realidade. Tem uma coisa que a Bárbara fala no filme que eu gosto muito, ela diz que Sim, é uma coisa sagrada e complexa. Por isso, não é só boa.” Nem toda experiência que a gente coloca como importante é boa e as experiências radicais são muito complexas, podendo acontecer de acordo com cada corpo, de acordo com cada mulher. Eu acho que a maternidade é uma experiência única.

Como foi a seleção das mães?

CP: O maior desafio de um documentário são as personagens. A etapa de pesquisa é uma etapa fundamental. Então, a Sara Estopa Zoli ficou dois meses trabalhando nisso e eu acompanhei muito de perto esse processo, porque a gente estava atrás de mulheres com perfis diferentes. A gente tem um tema que as une, que é o ponto de contato, que é a depressão pós-parto, mas o que me encanta são os lugares e os momentos em que elas se diferenciam, onde a gente vê e percebe os escapes possíveis dentro de um mesmo tema.

Muito embora sejam mulheres bem distintas entre si, de cidades e contextos socioculturais diferentes, todas elas carregaram culpa por não estarem exultantes diante da nova prole. No meio de tudo, a culpa parece ser um fator-comum da depressão pós-parto. Com base nas pesquisas feitas para o filme, você diria que isso é verdade? 

CP: Tem aquela máxima que diz Nasce um filho, nasce uma culpa. E a culpa é essa ideia de ter podido fazer diferente, ainda que isso nem sempre seja possível. E a culpa também é esse lugar que engessa, que imobiliza e que perpassa a experiência da maternidade. A culpa cruelmente é uma parte integrante da maternidade. Nesse momento, nessa sociedade em que a gente vive, não estar feliz depois que se tem um filho é não poder expressar isso. Eu acho que a gente entra numa questão moral que é muito pesada, com um pensamento de que uma boa mãe é uma mãe que ama, é uma mãe que está feliz, é uma mãe que está exultante com o nascimento do filho. Já a mãe que não está… Bom, ela é uma má mãe. 

Então, a gente vai para essa questão moral, que gera um conflito interno e externo muito grande. Por isso eu acho esse um dos grandes motivos desse silenciamento, dessa tristeza, dessa depressão pós-parto, dessa experiência aqui. Às vezes, ela pode não ser bacana. Muitas vezes, ela não é. É um caminho tortuoso. A gente sempre fala muito que é necessário parir uma mãe e, com frequência, parir essa mãe demora. E tem vezes que isso nunca acontece. Isso pode simplesmente não acontecer. É isso, a gente é uma sociedade que não está preparada para esse tipo de questão no papel social da mulher mãe.

Esse é um filme que lida, entre outras coisas, com uma dor muito forte. Como abordar um sentimento difícil como esse sem gerar desconfiança e, ainda assim, respeitar a sua própria visão para aquilo? Ainda assim, chegar em lugares relevantes para quem estiver assistindo.

CP: O meu maior obstáculo foi, sem dúvida, o tema. Como acessar essas mulheres? Eu tinha certeza que eu estava acessando uns lugares de dor e talvez eu estivesse pedindo para elas as piores memórias que elas tinham, memórias que eram muito dolorosas. Então, para isso, a gente começou a criar uma relação de cumplicidade e de confiança. Antes de abrir a câmera, eu já tinha conversado com cada uma delas algumas vezes. A gente já tinha pensado juntas como a gente construiria o fio narrativo de cada uma dessas histórias. Foi esse esse processo de trazê-las para perto também do filme, da criação do filme. Eu acho que isso foi muito importante.

A sensibilidade vista na condução do filme vem de um lugar pessoal seu, a partir de uma própria experiência pós-parto (mesmo que não de tanta dor), ou simplesmente da experiência de ser mulher?

CP: Eu acho que eu tenho em comum com elas essa vivência da radicalidade da maternidade. Foi um paradigma na minha vida. Eu me encontro ali mesmo. Eu não tive depressão pós parto, mas, ainda assim, eu me vi naquelas mulheres, sabe? Tinha algum lugar que eu entendia muito bem do que elas estavam falando. Alguns lugares, sim; outros, não. Eu acho que a maternidade foi um ponto que me deixou muito próxima do tema. Claro, tem a questão da mulher, que antecede também a maternidade e é também esse lugar da maternidade compulsória. Desde criança, a gente ganha boneca e, quando vai ter filho, tem sempre essa expectativa. Eu passei por esse antes também e quis vivenciar essa experiência. Poderia ter sido diferente, mas ter vivido eu acho que me conecta muito com elas. Encontrei espelhos ali.

Registrar o dia a dia dessas mães, rodeadas de afeto, é um dos pontos altos do filme. Qual foi o pensamento por trás dessa opção de filmagem?

CP: Essa é a questão central do filme: acompanhar o dia a dia delas. Conversei com cada uma para entender o que, e como, a gente iria gravar. Entender o que é importante dizer sobre essas vidas. E um outro ponto que eu acho fundamental que é um dispositivo que eu chamo de encontros: propus para elas que fizessem encontros e conversas sobre o tema com pessoas que transmitissem segurança para elas. Eu acho que essa intimidade traz muita profundidade para esse tema. Eu acho que essas conversas chegam em lugares que talvez uma entrevista não chegasse. E eu acredito muito nesse lugar da intimidade, nesse lugar dos encontros, desse lugar que também some a diretora entrevistadora, sabe? É um lugar que eu estou ali, delegando, propondo uma conversa entre pessoas e registrando isso. É um espaço que eu gosto muito.

Todos os relatos são muito francos, eles soam como verdadeiros e sem amarras. Para muitas pessoas, vai ser a primeira vez que verão mães sendo assim tão sinceras. Você atribui isso ao clima da filmagem, o contexto do mundo atual, ou a necessidade incontornável de se falar sobre o assunto?

CP: Eu acho que faz parte desse tempo em que a gente está problematizando esses papéis sociais da mulher e a maternidade. É um lugar central para a gente entender muito do que é a nossa sociedade. A maternidade, a reprodução, o trabalho gratuito… Sinto que a gente começou a olhar o papel social da mulher de outros ângulos. A gente começou a deflagrar o uso desse corpo que o capitalismo faz e sobrevive. Falar sobre isso tudo faz parte desse momento.

O que fazer daqui adiante para que a depressão pós-parto esteja cada vez mais em pauta? 

CP: A depressão pós-parto é um assunto tabu. Acredito que, quanto mais falada ela for, mais pessoas serão alcançadas. Isso pode estar na literatura, que tem livros bacanas que falam disso; no cinema, com mulheres conversando com outras mulheres sobre a realidade das maternidades. Eu acho que isso é um lugar bonito de construção entre as mulheres. Eu acredito que um filme tem uma potência para se levantar discussões sobre temas complicados e, junto com o nosso documentário, teve um lançamento de um aplicativo para auxiliar mulheres em depressão pós-parto. Esse aplicativo foi desenvolvido pela equipe da Unifesp e pode ser baixado gratuitamente. A gente está fazendo sessões especiais do filme para ONGs e entidades ligadas ao tema, além de estar também tramitando um projeto de lei em Brasília para homologar o Dia Nacional de Combate à Depressão Pós-Parto. 

Então, assim a gente está, aliado ao filme, fazendo outras frentes para ir cavando esses espaços de conversas sobre o tema.  


*O filme está disponível no serviço de streaming Globoplay.