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#43MiragemCulturaEditorialSociedade

Miragens do Brasil

por Jessé Souza

O sociólogo Jessé Souza é o editor convidado da edição Amarello Miragem.

A miragem acontece quando, por força de uma distorção objetiva, ou seja,  independentemente de nossa vontade, passamos a perceber subjetivamente a realidade exterior a nós de modo objetivamente deturpado. Isso pode acontecer ao sedento sem água no deserto que imagina ver um Oásis à sua frente, mas também pode acontecer com todo um povo que passa a se perceber a partir de uma imagem deturpada de si mesmo. 

Se, no primeiro caso, a miragem é produzida pelo desejo; no segundo, ela tem a ver com a produção de uma violência simbólica sistemática, a qual, para criar indivíduos e grupos sociais humilhados e servis, forja, no decorrer do tempo, uma autoimagem depreciativa do próprio povo. Foi o que aconteceu com o povo brasileiro. 

Secularmente, o modo hegemônico de humilhar e menosprezar na sociedade brasileira foi e ainda é (hoje de modo velado) o racismo racial. Até 1930, o racismo racial era amplamente hegemônico e aceito por todos, mesmo por quem defendia os negros como Joaquim Nabuco. A inferioridade inata do negro era uma crença compartilhada por todos, quer ela provocasse compaixão, quer provocasse ódio. 

A ascensão de Getúlio Vargas ao poder muda este quadro de forma importante. Como seu projeto de modernização e industrialização do Brasil implicava a inclusão da maioria de mestiços e negros da população como trabalhadores úteis, Vargas percebia a necessidade de se criticar e superar o racismo racial como modo de recuperar a autoestima da população condenada à humilhação e ao abandono. Afinal, não se reconstrói um país com uma população de ofendidos e humilhados. 

Vargas se utiliza da ideia do “bom mestiço” de Gilberto Freyre, que procurou amenizar a condenação do povo negro e mestiço atribuindo-lhe as virtudes ambíguas do brasileiro quando pensado positivamente até hoje: a afetividade, a hospitalidade, a sexualidade exuberante etc. Com isso Vargas logra construir uma “identidade nacional brasileira”, a qual simplesmente  inexistia antes dele, com a qual os brasileiros poderiam se identificar de maneira positiva. Para isso, empreende um esforço articulado de perceber, agora, a influência africana não mais como vergonha e sim como orgulho, por exemplo, pela exaltação do samba como música nacional e do futebol praticado pelos negros. 

Mas a elite nunca engoliu Vargas, muito especialmente a elite paulista. O motivo é o de sempre: a elite brasileira sempre viveu e ainda vive do monopólio político de privilégios estatais e do saque puro e simples do orçamento público como se fosse coisa sua. É o que acontece até hoje com uma dívida pública nunca auditada e, portanto, fraudulenta, como forma de se assenhorar do orçamento público para uma meia-dúzia. 

Mas, para voltar a exercer esse tipo de dominação, era necessário destronar Vargas. A derrota militar do exército paulista impossibilitou a via mais rápida. É aí que a elite paulista descobre que a dominação social moderna é feita antes de tudo por ideias envenenadas e não por armas. Afinal, ela detinha não apenas o agronegócio e as nascentes indústrias, mas também todos os jornais, as rádios, as editoras e as universidades. A USP, por exemplo, que vai ser o modelo para todas as outras, foi um projeto privado da elite paulista dos anos 1930. 

Se toda a difusão de ideias, ou seja, o mundo simbólico, estava em mãos privadas da mesma elite do saque econômico, só faltava uma ideia nova, uma “nova identidade nacional” que criticasse a afirmação popular pretendida pelo Varguismo. Para recuperar seu domínio simbólico e material, a elite precisava culpar o próprio povo pela própria miséria e pobreza, culpando a própria vítima do abandono. Era preciso, em suma, uma nova ideia que repusesse o povo de volta à lata de lixo da história do mesmo modo que o racismo racial explícito havia feito antes de Vargas.  

O antirracismo de Vargas sem dúvida não produziu uma democracia racial. Seria necessário mais tempo e esforço para isso. Mas, pelo menos, interditou o racismo explícito anterior, expulsando o racismo da esfera pública e o jogando à esfera privada. Afinal, os “afetos racistas” continuavam a existir, fazendo de conta que tinham morrido. É isso que cria, a partir de 1930, o assim chamado “racismo cordial” brasileiro. Um tipo de racismo que não pode se assumir enquanto tal.

Era necessário, portanto, uma nova “identidade nacional”, que é a forma como um povo se auto-compreende, que satisfizesse os afetos racistas; agora, no entanto, sem sequer tocar na palavra “raça”. Essa foi a invenção “genial” de Sérgio Buarque, que ainda hoje influencia pelo menos 90% dos intelectuais e jornalistas brasileiros. A descoberta do “homem cordial”, como se fosse o brasileiro genérico – ou seja, o mesmo homem afetivo que Freire havia tentado, ambiguamente com certeza, afirmar positivamente – é agora reposto na lata de lixo da história como negatividade absoluta. 

Se antes o povo negro e mestiço era percebido como inferioridade racial e inata, agora, com Buarque a humilhação do povo se moderniza, torna-se “cultural” e não mais racial, já que o racismo científico havia perdido sua legitimidade. O povo brasileiro passa a ser estigmatizado, agora como símbolo do engodo e da corrupção. Um povo inconfiável e intrinsecamente corrupto e, cereja do bolo, suposto eleitor de representantes tão corruptos como ele. 

Estava criada a ideia motor da história brasileira até hoje, que permitiu criar uma “cultura de golpes de Estado” sempre sob a acusação de corrupção de líderes populares, como Vargas, Jango, Lula e Dilma, que sequer necessita ser comprovada, basta que a mídia, propriedade privada da elite, escandalize supostos casos de corrupção. Essa é a “miragem brasileira”, elitista, racista no fundo, mas que tira onda de crítica social. Essa ideia ainda é a ideia dominante em todas as universidades e praticamente em toda esfera pública. 

Neste número da revista, iremos conhecer a voz dos silenciados por este discurso cretino que está, no entanto, entalhado e gravado de forma indelével, já que repetido quotidianamente por toda a imprensa e indústria cultural, na cabeça de todo brasileiro. 

Jamais existirá uma nova sociedade mais justa entre nós, se não acontecer a crítica de uma “identidade nacional” dominante que humilha, do mesmo modo que o racismo racial explícito anterior, o povo brasileiro, culpando a própria vítima de sua miséria. De lambuja, foi também Buarque que criou o “bode expiatório” perfeito para tornar invisível o saque elitista: o suposto “Estado patrimonial” tão intrinsecamente corrupto quanto o povo. De uma penada se criminaliza a soberania popular, o Estado e a política. E se torna invisível o saque praticado pelos donos do mercado.

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