Meu último café
Eu peço meu terceiro café.
Vou tomar outra bronca da minha dentista.
Christiane, minha amiga de Londres, está atrasada — de novo.
***
Ela chegou, toda esbaforida.
— Oi, Thais! Me desculpa pelo horário. A minha vida está parecendo aquela música da Tulipa Ruiz, sabe qual é?
E canta:
— Tem que correr, correr, tem que se adaptar (…) tem tanta gente sem saber como é que vai priorizar… Aquela que se chama Dois cafés — diz a Chris, olhando para as xícaras vazias que estão sobre a mesa.
A atendente da padaria chega com o meu pedido e minha amiga solta essa:
— Ué!? Você não ia parar de tomar café?
Não respondo; meu sorriso amarelo diz tudo.
Ouço com atenção o que ela começa a me contar.
***
— Slam! Blam! É um excesso de ruído dentro e fora de mim, Thais! Não aguento mais! Todos os dias ouço esse barulho, diversas vezes. Meu novo vizinho, acredita? Não se preocupa em fechar a porta de sua casa sem batê-la! E o pior… Minha cachorrinha, curiosa que é, toda vez que a porta bate, começa a latir. Eu levo o maior susto! É a britadeira de alguma construção próxima à minha casa, são os carros passando na rua em frente, são as mensagens no WhatsApp que não param de chegar. Instagram, Facebook, Twitter. Curto, não curto? Posto, não posto? Quantos seguidores? Eu não desligo! Meus pensamentos ficam a mil por hora! São escolhas e decisões que não consigo fazer, deadlines a cumprir, meus pais envelhecendo, eu envelhecendo. Terei filhos? Tenho 40 anos! Sinto medo ao perceber o passar do tempo… Um calafrio… Areia da ampulheta que não para de escorrer… Ah… Como eu queria segurar cada um desses grãozinhos.
Eu a interrompo e digo:
— “O tempo e suas águas inflamáveis, esse rio largo que não cansa de correr”. Lembrei desse trecho de Raduan Nassar, do Lavoura arcaica. Lembra, Chris, quando assistimos ao filme juntas?
— Faz quase vinte anos! Nossa, Thais, ele descreve de forma perfeita o que me queima. E por falar em fogo, voltei a fumar! O alívio dura pouco, depois me sinto péssima, culpada, e acendo outro cigarro. O que estou fazendo com a minha saúde? Quanto mais ansiosa fico, mais eu fumo. Pareço levada por uma avalanche. Pensamentos e sentimentos invadem a minha cabeça e me paralisam ou me levam a repetir o mesmo caminho de sempre, familiar. Que raiva eu sinto quando me vejo nesse looping… Eu não entendo por que ajo dessa maneira tão sem lógica! Thais, você que é psicóloga, me fala: você acha que tomar muito café, como você faz, que meu vício em fumar e esses pensamentos repetitivos que me assolam têm um quê de compulsão?
Deixo de respondê-la, pois do fundo da padaria surge uma melodia, em meio ao estalar das chapas, que desvia a minha atenção.
— Chris! Ouça a música que está tocando!
— Adooooro!
E, se referindo à letra da música, ela completa:
— Como ser livre para ser quem eu sou?
— É, amiga… Boa pergunta! Liberdade para nos tornarmos nós mesmas…
Da padaria ao consultório
Compulsão não é uma conduta voluntária, é uma expressão da grande dificuldade que muitas pessoas têm de controlar os seus impulsos.
Segundo o Vocabulário da psicanálise de Laplanche e Pontalis, compulsão é uma atividade que o indivíduo realiza sob o domínio de uma imposição interna, e seu não cumprimento é sentido como algo que levará ao aumento da angústia.
Pensamentos obsessivos levam a comportamentos repetitivos: compulsão por trabalho, compras, jogos, sexo, exercícios físicos, comida, roer unhas (onicofagia), contar mentiras, arrancar os cabelos (tricotilomania), transtorno de acumulação, consumo excessivo de álcool e drogas, uso excessivo de redes sociais e a problemática de nossos tempos, a nomofobia, que é o medo irracional de ficar sem o celular. Esses são alguns dos comportamentos compulsivos mais comuns.
Tais comportamentos trazem muito sofrimento ao indivíduo em razão da vivência de estar preso em uma sensação de eterno retorno, de um looping infinito. Refiro-me a um funcionamento psíquico em que o agir impera — sua força, pungente, chega antes da força do pensar e praticamente suprime a capacidade de se fazer escolhas. Nesse mundo interno ruidoso e, muitas vezes, acompanhado por um “vazio” turbulento, a culpa reina.
“I wish I knew how it would feel to be free”[1]
Freud disse que repetimos aquilo que não conseguimos elaborar. Depois aprofundou seu olhar ao propor a presença de uma força poderosa — difícil de transpormos — que nos impele a repetir um estado anterior, mesmo que desagradável, em busca de evitar qualquer tensão psíquica. O trabalho dessa força, realizado de forma silenciosa e sorrateira, teria como meta a descarga, a rejeição ao novo e, em última instância, a volta ao inorgânico, à morte. Freud nomeia tal força destrutiva de pulsão de morte, e esse movimento interno, de compulsão à repetição. O pai da psicanálise escreveu de forma muito interessante e profunda sobre esses fenômenos em seu clássico texto intitulado Além do princípio de prazer, elaborado entre 1919 e 1920.
Não é preciso ir aos extremos dos vícios e das adições, pois a força destrutiva da compulsão à repetição é grande, cotidiana e afeta todos nós.
Certa vez, um analisando, muito irritado por não conseguir mudar determinada forma de agir que o levava continuamente a situações de risco, me disse:
— Nonsense!
Sua voz raivosa revelava não apenas frustração, mas também, como minha amiga da história, a percepção dolorosa da existência de um mundo dentro de cada um de nós que nos foge ao controle.
“I wish I could break all the chains holding me”[2]
Vem à mente o delicado livro chamado a A parte que falta, de Shel Silverstein. É bonito como poetas tocam nossas emoções e falam de maneira tão simples aquilo que especialistas (não sem o mesmo valor!) comunicam de maneira tão complexa. Sentimento de falta sempre nos acompanhará, e senti-lo também nos é importante.
Poderia a falta virar espaço para a criatividade?
Para Bion, um psicanalista da linha inglesa cuja obra muito aprecio, um pensamento novo pode surgir da nossa capacidade para tolerar a frustração, a falta, a ausência, aquilo que desconhecemos.
Precisamos suportar uma dose de frustração para desenvolvermos a capacidade de pensar, de construir redes simbólicas. Tal condição de autoria permitirá que novos horizontes se revelem dentro e, consequentemente, fora de nós — caminhos a serem desbravados que podem nos levar à relevante descoberta de quem somos, ainda que esta, por natureza, seja transitória e incompleta.
***
Finalmente, me lembrei! Os versos que ressoam dentro de mim enquanto escrevo este texto são da música que tocava na padaria, na voz de Nina Simone:
“I wish I knew how it would feel to be free
I wish I could break all the chains holding me
I wish I could say
All the things that I should say…
Say ‘em loud say ‘em clear
For the whole round world to hear[3]”
A conversa que tive com a minha amiga ressurge em meus pensamentos. Me emociono e, por algum tempo, assim permaneço. Os ruídos em mim viram melodia.
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P.S: Considero importante destacar o valor, o significado histórico e o profundo peso político da música I wish I knew how it would feel to be free, composta por Billy Taylor, em 1963, e que ganhou popularidade na voz de Nina Simone. Essa canção tornou-se um hino do movimento afro-americano pelos direitos civis nos anos 60. Neste texto, procurei usar — alegórica e respeitosamente — alguns de seus versos para ilustrar o anseio humano por romper com aquilo que aprisiona e, assim, ser livre.
[1] Em tradução livre, “Eu gostaria de saber como seria me sentir livre”.
[2] Em tradução livre, “Eu gostaria de poder quebrar todas as correntes que me seguram”.
[3] Em tradução livre: “Eu gostaria de saber como seria me sentir livre / Eu gostaria de poder quebrar todas as correntes que me seguram / Eu gostaria de poder dizer / Todas as coisas que eu gostaria de dizer… / Dizer em alto e bom som / Para todo mundo ouvir”.