“O passado é mudo? Ou continuamos sendo surdos?”. Lembrei dessa frase do Eduardo Galeano, em As veias abertas da América Latina (1971), quando começava a escrever este texto, o que me fez ter a ideia de parafrasear para vocês: “O passado do Norte é mudo? Ou o restante do Brasil continua sendo surdo?”. Pensem aí, enquanto inicio o desafio de pontuar a importância de consumir obras escritas por autores e autoras nortistas e de convidar ao exercício de pensar a região Norte através dessas produções. Produções não só no mundo da literatura, mas de pesquisadores, comunicadores e produtores de conteúdo e de gente que produz arte no geral, ou seja, a atividade de dar protagonismo aos seus, aos da terra. 

Antes de começarmos, tenhamos uma brevíssima reflexão sobre uma parte da história do Brasil, da Amazônia! A história de um povo com “sangue cabano e alma de rio”.

Em Amazônia: colônia do Brasil, a pesquisadora Violeta Loureiro escreve de forma clara como a Amazônia Legal, especialmente os estados que fazem parte da região Norte, foi construída, e como as visões sobre o território amazônico se estenderam por todo o país. Esse imaginário de indiferença, de que somos subdesenvolvidos, é uma herança do pensamento colonial sobre a população amazônida ― o que alerta o quanto precisamos subverter esses pensamentos, que persistem ainda nos dias de hoje. 

A resistência do povo do Norte aparece em vários períodos históricos, como no período de ameaças de bombardeios até a Província do Grão-Pará aderir à independência do Brasil, que exemplifica o protagonismo popular nortista através da “revolução social dos cabanos”, primeiro movimento a chegar ao poder liderado por indígenas, negros de origem africana e mestiços. A cabanagem foi um movimento que teve vários pontos em comum: a luta por direitos, por liberdade e principalmente pela construção do sentimento de identidade. Esses acontecimentos, e tantos outros, são poucos abordados nos livros de história do ensino básico, o que revela uma narrativa incompleta sobre o país. O quanto perdemos, como sociedade, quando não estudamos sobre essas populações que, assim como as outras, fazem parte da nossa história? Como coloca a historiadora Magda Ricci, esse acontecimento “ainda é analisado como mais um movimento regional, típico do período regencial do Império do Brasil”. A onda de novos pensadores e pesquisadores vem para reformular e problematizar a história não de uma região, mas de todo o país. 

Esse exercício de pensar de dentro para fora foi realizado pela antropóloga Neide Gondim ao escrever a obra A invenção da Amazônia. Nela, Gondim contextualiza como as representações europeias foram projetadas sobre a localidade que hoje conhecemos como Amazônia. Em meio a tantas guerras e sangue, ainda assim conseguimos assegurar a economia do país.

Caro leitor, cara leitora, o que estou tentando dizer aqui, rapidamente, é que a invisibilidade do Norte, assim como a do Nordeste, foi construída, ao longo da história, por mãos que reproduziram concepções europeias sobre a cultura amazônica. Um viés estrangeiro. Faça você mesmo o teste: pegue caneta e papel e liste três coisas que vêm à cabeça quando você pensa na região Norte. Se você for de outra região do país, as respostas serão alinhadas com o senso comum.

Hoje os olhares estão para o Norte, a COP 30, que discute sobre as mudanças climáticas do planeta, será sediada em Belém, no Pará. É a primeira vez que o Brasil receberá o evento que reúne mais de 192 países. É a primeira vez que acontecerá na Amazônia! Comentários xenofóbicos surgirão até a chegada de 2025, afinal, onde já se viu um evento como esse não acontecer no Sul e Sudeste? Segundo as visões de fora, não temos aeroportos, hotéis, nem mobilidade urbana capaz de conduzir os senhores e as senhoritas a um evento internacional. É verdade que precisamos aprimorar alguns agentes para que consigamos comportar a COP, mas é um ato ignorante quando relegam a região Norte a um atraso. Falando de Belém, temos os maiores polos de pesquisas, como o Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) e o Museu Emílio Goeldi (MPEG), tido como primeiro projeto nacional de estudo científico da Amazônia. Esses e outros campos de pesquisas já discutem há muitos anos o que é Amazônia. Só em 2025 o mundo terá a dimensão de como somos de fatos! Somos, sim, um povo da floresta e dos rios, mas também da cidade e em constante desenvolvimento. Nessa oportunidade de discutir a Amazônia na Amazônia é que precisamos consolidar mais ainda o que vem do Norte e desmistificar os “pré-conceitos”.

A questão é: todo mundo terá algo para falar sobre a Amazônia, sobre Belém ou sobre o Norte. E por que se faz tão necessário pensar a região a partir das produções nortistas? No início do texto, comentei sobre a invisibilidade que a história da região possui e o quanto ela foi escrita por mãos que não sabem fazer uma “boca de lobo” em uma rede. Portanto, para romper com estereótipos, nada mais coerente do que consumir conteúdos de comunicadores do Norte e literatura escrita por autores e autoras nortistas. Ler o Norte é também ler o Brasil! Somos interligados por rios; como Ailton Krenak bem falou, “o futuro é ancestral”. 

Os escritores Milton Hatoum, Márcio Souza e Dalcídio Jurandir talvez sejam os autores mais conhecidos quando falamos de literatura que traz o cenário amazônico nas páginas literárias. Flor de gume, ganhador do Prêmio Jabuti em 2021, da escritora paraense Monique Malcher, é um dos livros contemporâneos mais conhecidos, não só por ter sido premiado, mas pela genialidade com que a escritora escreveu os contos. Nesse caso, nem entrarei em questões de gênero, porém, aproveitando a concepção de “o outro do outro”, que Djamila Ribeiro discute em Lugar de fala, e transferindo para a literatura amazônica: se a literatura nortista é “o outro”, a escrita por mulheres nortistas é “o outro do outro”.

Dois irmãos, Mad Maria, Chove nos campos de Cachoeira e Flor de Gume são obras que apresentam quatro percepções da região, trazendo consigo a identidade, a cultura e a história de Manaus, Rondônia, Ilha do Marajó e Pará. É comum que os sujeitos coloquem esses lugares como se fossem um só bloco, e é isso que torna pertinente a leitura do Norte sob a perspectiva de quem as escreveu. Fica possível mapear suas singularidades e analisar minuciosamente o sentimento de pertencimento ali contido. 

Em Flor de gume, por exemplo, conseguimos navegar nas águas do rio Tapajós quando a autora traz a sua cidade natal, Santarém. A experiência de viajar em embarcações, a encantaria e as histórias amazônidas que são transmitidas oralmente de geração para geração. Se o futuro é ancestral, é porque ainda carregamos uma herança cultural que permeia nossa sociedade. Aquela que não conseguiram censurar ou matar. A Amazônia é agora!

Leia o Norte! Parece que digo o óbvio… Todavia, quantas obras escritas por autores nortistas tu já lestes? Ou quantos autores nortistas tu conheces sem os que mencionei aqui? A sensação que dá é que, para o restante do Brasil, o Norte é invisível. Por essa razão, nós, nortistas, lutamos incansavelmente nessa retomada do Brasil querer saber da gente. É a nossa chance de mostrar o protagonismo amazônico do passado e do agora. Sendo assim, se informar a partir das produções e de comunicadores nortistas ajuda a desconstruir e fazer as nossas vozes serem ouvidas. Vozes amazônidas, negras e indígenas. Gritos da gente do Norte, que não aguenta mais ser invisível, mesmo tendo um corpo que fala ― o mesmo corpo que tanto sangrou antes agora usa desse sangue como luta para conquistar aquilo que é seu de direito: a retomada da sua própria história!

A escrita deste texto parece individual, mas foi coletiva, porque, para que eu estivesse aqui, inquietando todos vocês, muitos outros estiveram comigo, aqueles que vieram antes de mim lutando por mais espaço e protagonismo. Espero que vocês leiam este texto mais como um grito de um povo que quer e precisa ser ouvido. 

Se eu coloquei aqui que “ler o Norte é ler o Brasil”, por que todos estão lendo só uma parte? Esta é a hora de sair do conforto e partir para cá! Espero que este texto, que se tornou um manifesto, faça atravessar as linhas que delimitam as nossas regiões. Linhas que se tornaram muros e agora estão sendo derrubadas! A redoma de vidro foi retirada! Leiam, ouçam e pesquisem o que o povo da Amazônia produz!

Tu já foste ler o Norte?