Antonio Candido e a literatura como espelho do Brasil
“A literatura desenvolve em nós a cota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos à natureza, à sociedade e ao semelhante.”
Antonio Candido, em Direitos Humanos e Literatura (1989)
A obra de Antonio Candido, antes debaixo dos braços da casa editorial Ouro Sobre Azul, está sendo relançada pela editora Todavia, que, apesar de estar em atividade há não muitos anos, já se firmou como uma das principais do país. Por que isso é importante — talvez até mais do que pareça? Considerado como o maior crítico literário brasileiro, Candido não só foi original ao elaborar um método próprio de interpretação literária, ancorando-se no pensamento social, mas fez isso indo na contramão dos ditames acadêmicos da época e, assim, foi capaz de fugir da onda dominante do enquadramento da literatura como algo isolado do mundo real. Com coragem e uma inventividade rara à esfera da crítica, bateu de frente com a ideia da “arte pela arte” e nada mais — algo que, hoje em dia, é cada vez mais rechaçado. Foi dessa forma que, ao lançar mão desse expediente pioneiro com maestria ímpar, também foi um dos principais intérpretes do Brasil.
O relançamento da obra de Antonio Candido, portanto, celebra o legado de uma figura de referência para o pensamento brasileiro (não limitado ao campo da literatura) e amplia a circulação de seu trabalho, mostrando às novas gerações a atualidade de um corpo de trabalho decisivo.
“A literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, mutilação espiritual. Tanto num nível quanto no outro ela tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos.”
— Ensaio O Direito à Literatura (1988)
Não é à toa que, com frequência inevitável, é posto no panteão, sentado confortavelmente ao lado de nomes como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Celso Furtado e Sérgio Buarque de Holanda. À exemplo desses titãs, também tinha um apreço maior pela forma do ensaio, numa escrita que alcançava aquilo que muitos almejam mas poucos conseguem: refinamento, clareza e acessibilidade. Com seu olhar sensível sobre a cultura e a sociedade, Candido integra uma linhagem de pensadores latino-americanos que marcou para sempre a produção intelectual do continente, com influência internacional.
Explorar as relações entre a literatura e a sociedade talvez hoje soe com os acordes da normalidade, como um caminho que parece o natural, mas, se é que isso acontece, é porque Candido cuidou de fortalecer e enraizar as suas visões com uma fieira de textos divisores de águas. Uma de suas obras mais conhecidas, Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos, publicada em 1959, é considerada um marco na historiografia literária brasileira. Em 2023, mais de 60 anos depois, ela segue com o frescor daquilo que é indelével. Nela, o autor analisa o desenvolvimento da literatura no Brasil, destacando as influências sociais, históricas e culturais que moldaram a produção literária no país. Não é sempre que podemos dizer, de boca cheia, que uma obra transformou por completo o campo a que pertence, mas esse é o caso. Desde a sua publicação, é referência obrigatória para qualquer estudioso da literatura e da sociedade brasileira.
“Deste modo sendo um livro de história, mas sobretudo de literatura, este procura apreender o fenômeno literário da maneira mais significativa e completa possível, não só averiguando o sentido de um contexto cultural, mas procurando estudar cada autor na sua integridade estética. É o que fazem, aliás, os críticos mais conscientes, num tempo, como o nosso, em que a coexistência e rápida emergência dos mais variados critérios de valor e experimentos técnicos; em que o desejo de compreender todos os produtos do espírito, em todos os tempos e lugares, leva, fatalmente, a considerar o papel da obra no contexto histórico, utilizando este conhecimento como elemento de interpretação e, em certos casos, avaliação.”
— Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos (1959)
Por meio de análises e interpretações de diversos períodos literários, do colonial até o modernismo, fornece um panorama abrangente da evolução literária no Brasil, examinando não apenas as obras literárias em si, mas também o contexto social, político e cultural em que foram produzidas. Nas mãos de Antonio Candido, Arcadismo e Romantismo, por exemplo, são considerados, como diz o título, “decisivos” na formação de um “sistema literário” — isto é, a argamassa que se dá entre autores, obras e públicos, para padronizar aquilo que entendemos como uma tradição. Despidos de suas auras de “escolas” inatingíveis, até mesmo o Arcadismo e o Romantismo viram partícipes da história dos brasileiros no desejo de ter uma literatura. Estilos, temáticas e formas literárias se somando às motivações político-sociais dos autores, que, justamente por serem respostas diretas ao contexto, têm o condão de deixar o seu impacto na sociedade. É sobre esse ringue que Formação da Literatura Brasileira, e Candido, dão seus golpes elucidativos.
Através do estudo da formação da literatura brasileira, é possível analisar as diferentes correntes literárias, identificar tendências, entender as influências estrangeiras e apreciar a diversidade de vozes e expressões. Diversidade é o que não falta. Estreitar os estudos a esse ou aquele autor/movimento é minimizar os muitos Brasis que temos na história. Pesquisar de forma abrangente, sim, é uma maneira de pluralizar as referências, num esforço louvável de colocar em pé de igualdade literaturas que, motivadas por elitismo e tantos outras problemáticas sociais, não têm o mesmo destaque. Ao traçar um panorama histórico da literatura do país, identificando os momentos-chave, as rupturas, as continuidades e as transformações ocorridas ao longo do tempo, temos pistas para entender como a literatura brasileira se desenvolveu, desde os primeiros registros literários do período colonial até as manifestações literárias contemporâneas.
“A literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.”
— Direitos Humanos e Literatura (1989)
Das obras literárias tira-se reflexões sobre os valores, as ideias, os conflitos e os desafios que permearam a história do Brasil. A literatura muitas vezes é um reflexo das transformações sociais e políticas de uma determinada época, e ao estudar a formação da literatura brasileira, podemos analisar essas relações e interpretar as obras literárias em seu contexto mais amplo. A formação da literatura brasileira também nos possibilita valorizar e preservar o patrimônio literário do país. Ao conhecer e estudar as obras canônicas e não-canônicas, somos capazes de apreciar a riqueza e a especificidade da produção literária brasileira. Isso contribui para a construção de uma identidade cultural nacional e fortalece a importância da literatura brasileira no cenário global.
Isso para não dizer que o estudo da formação da literatura brasileira tem relevância acadêmica, pois alimenta as pesquisas, debates e produções científicas no campo dos estudos literários. Ao compreender a formação da literatura brasileira, os estudiosos podem aprofundar suas análises, desenvolver teorias e contribuir para o avanço do conhecimento literário. É por meio do que propunha Candido que podemos enriquecer nossa apreciação e compreensão da literatura brasileira, reconhecendo sua importância como expressão artística e como fonte de reflexão sobre a condição humana e o mundo ao nosso redor.
“Alterando um conceito de Otto Rank sobre o mito, podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente.”
— Ensaio O Direito à Literatura (1988)
Em março deste ano, foram relançados os primeiros cinco livros: Formação da literatura brasileira: Momentos Decisivos, Os parceiros do Rio Bonito, Literatura e sociedade, O discurso e a cidade e Iniciação à literatura brasileira. No segundo semestre de 2023, e depois em 2024, virão os seguintes: Vários escritos, Um funcionário da monarquia, Teresina etc., A educação pela noite, Brigada ligeira, O método crítico de Silvio Romero, Ficção e confissão, O observador literário, Tese e antítese, Na sala de aula: cadernos de análise literária, Recortes e O albatroz e o chinês.
Sua influência continua a ser sentida até hoje, e sua contribuição é amplamente reconhecida e valorizada no meio acadêmico e literário. Colocar Antonio Candido mais uma vez sob os holofotes, num momento em que o país se reconstrói e aprende a se valorizar novamente, é algo necessário.
Vida longa.