Entretidos e distraídos: a cultura no tempo do excesso
O mundo contemporâneo é hospedeiro de um emaranhado de conteúdos sem precedentes. Em meio aos stories e reels que se multiplicam no Instagram feito Gremlins, há produções artísticas — literárias, audiovisuais, musicais — emergindo em uma escala massiva. Pelo menos em tese, hoje em dia é mais fácil criar e divulgar conteúdo, uma vez que o acesso às ferramentas está mais amplo e facilitado. Diante dessa perspectiva, o contexto que se apresenta é: geração constante e inclusiva de cultura, mas, concomitantemente, debilitação alarmante na circulação e na preservação do que foi e está sendo produzido. Diante da proliferação de plataformas de streaming, da extinção das locadoras, do crescimento do comércio digital de livros e mais tantos outros adventos que sabemos e não sabemos nomear, surge a importante questão: onde encontrar, acessar e preservar o vasto acervo cultural do nosso tempo?
O modelo dos streamings está passando por uma crise existencial e a grande reviravolta da história é que isso não vale somente para as Netflix e Amazon Primes da vida, vale também para as pessoas que as assistem. Estamos em crise também com o que consumimos. Aquele fuzuê que embaçava a visão com os ventos de uma bem-vinda revolução, um festejo confortável e promissor em que ficamos com o surgimento dos streamings, à espera de uma mudança para melhor, tudo aquilo logo foi interrompido. Por ter dado muito certo, e ter rapidamente alterado a forma como consumimos e produzimos, o otimismo não tardou a cair por terra na medida em que a onda inicial de expansão quase ilimitada foi sobrepujada por uma onda de megafusões e uma crescente insatisfação com os catálogos, especialmente quando estes reduzem suas ofertas apesar de os preços das assinaturas continuarem subindo.
A verdade é que todos nós já fomos seduzidos pela promessa aveludada da era do streaming: ter tudo em qualquer lugar e ter tudo de uma vez. “Tô dentro”, certo? Essa fantasia maravilhosa contrastava com a maneira antiga de consumir televisão, batendo de frente com a lógica que hoje parece tão ultrapassada em que você se sentava para assistir ao programa no momento em que ia ao ar ou então, azar o seu, você não o veria a menos que tivesse a sorte de assisti-lo em reprises. Com o streaming surgindo como uma versão aprimorada do on demand, tudo isso ficaria para trás: nada mais de fitas ou DVDs, ainda bem; nada mais de ter que se adequar aos horários dos programas, para o alívio geral. Agora, quem estaria no comando, quem comandaria a grade de programação, era o espectador.
Mas nem tudo são rosas e a fantasia era uma fantasia por um motivo.
Crise? Que crise?
Nos últimos meses, grandes estúdios começaram a retirar conteúdo de suas plataformas de maneira mais acintosa. A Disney+, por exemplo, largou mão de Y: The Last Man e Willow, séries que decerto não foram baratas aos seus cofres. E, inclusive, chegou ao cúmulo de sequer lançar Batgirl, programado para 2023. Ué… Mas por que fazer isso? Se o conteúdo em questão está parado em qualquer disco rígido ou nuvem, ainda que não seja um grande hit como Stranger Things ou o que o valha, qual é o problema de deixá-lo lá?
Acontece que as empresas — pasmem! — se preocupam, acima de tudo, com os seus balanços financeiros e os seus acionistas. Essa remoção de conteúdos dos catálogos dos principais serviços de streaming, então, tem acontecido por nada mais nada menos que corte de gastos. O que nem todo mundo sabe é que, mesmo no cenário digital, manter filmes e séries circulando significa pagar taxas de licenciamento e outros valores diversos. Ou seja, há um custo alto contar com os títulos disponíveis, até mesmo produções originais.
O problema, no final, é que muitos streamings ainda não apresentam lucros suficientes para que seja viável continuar com diversas produções em seus catálogos e ainda produzir novos títulos originais, que também precisam ser licenciados. É como se o feitiço se virasse contra o feiticeiro: o grande acervo, argumento de venda que mais seduz as pessoas, é também o tiro que sai pela culatra quando ele faz com que esse custo adicional tenha que ser pago. Ou seja: estamos produzindo mais do que nunca, como se dependêssemos disso para evoluir enquanto espécie, mas também estamos descartando esses produtos com uma facilidade, ou mesmo indiferença, que chega a assustar.
O que nos leva às greves que estão causando um verdadeiro rebuliço em Hollywood e que prometem obstruir as engrenagens do mercado audiovisual estadunidense por um bom tempo — e por bons motivos.
O que a greve de atores e roteiristas significa?
O SAG-AFTRA (Screen Actors Guild – American Federation of Television and Radio Artists), que representa mais de 160 mil profissionais nos Estados Unidos, incluindo os Brad Pitts e as Meryl Streeps, entrou em greve em julho. O WGA (Writers Guild of America), por sua vez, já está em greve desde 2 de maio. A paralisação impacta Hollywood de inúmeras formas, não só na inviabilidade de se trabalhar em sets de filmagens: entre as restrições dos sindicatos, estão as participações em qualquer evento de divulgação, material publicitário ou cerimônia de premiação envolvendo os filmes. E só de alguém ter lido essa última frase, em voz alta ou mentalmente, o cabelo na nuca de algum magnata de estúdio levantou, já que, diferentemente dos roteiristas — desvalorizados, dentre tantos outros motivos, por não terem caras conhecidas ao grande público —, os atores têm um peso comercial inigualável nas campanhas de lançamento.
Imagine, a título de exemplo, a premiére de um filme com Leonardo DiCaprio — invariavelmente, chamado de “o novo filme do Leonardo DiCaprio”, independentemente do grande diretor que assina a obra — sem a presença de Leonardo DiCaprio. Seria, no mínimo, anticlimático.
A grande questão é que os tempos vêm mudando e os modelos de negócio também, mas os contratos oferecidos pelos grandes estúdios a muitos profissionais já não refletem as inúmeras mudanças recentes da indústria. O SAG-AFTRA bem que tentou negociar com o Alliance of Motion Picture and Television Producers (AMPTP) por semanas, mas nada foi para frente, explicitando uma convicção inabalável dos grandes mestres titereiros desse mercado. Dá até para imaginar eles falando, em bom brasileiro, “é que em time que está vencendo não se muda, né?”, esquecendo do bem-estar de todos os jogadores em campo, da vontade dos espectadores de ver aqueles jogadores em campo, e, assim, dando um categórico tiro no próprio pé. Fran Drescher — lembrada sempre pelo icônico papel em The Nanny (1993-1999) —, presidente do SAG-AFTRA, disse que entrar em greve não foi uma decisão fácil, mas que ela foi uma unanimidade entre os associados.
Atores e roteiristas estão de mãos dadas, pedindo pagamentos que julgam ser mais adequados. O que mudou, e justifica o presente levante, foi que, quando uma produção audiovisual chegava a mercados internacionais ou era reprisada, além da remuneração original, a entrada de receita era repartida com profissionais envolvidos na obra, o que gerava pagamentos residuais — os tão famosos residuals — aos atores e roteiristas. Desde a popularização do streaming, no entanto, a arrecadação de filmes e séries ficou menos transparente, e não gera pagamentos residuais conforme distribuição ou exibições, já que esses serviços têm alcance global e acervos que possibilitam reprodução irrestrita. Passando tudo para o papel, os estúdios e produtores continuam tendo lucro — mesmo com os problemas apresentados pelas plataformas de streaming —, mas outras pessoas perderam a sua fatia.
Outro ponto em que atores e roteiristas dão as mãos é o que diz respeito à inteligência artificial. Com as possibilidades de reprodução da imagem de artistas e produção de textos com essas ferramentas, as categorias alegam que seu uso pelos estúdios deve ser discutido com os profissionais, coisa que a AMPTP, por atualmente se beneficiar demais com isso, se recusa a fazer.
A crise está instaurada sem muitas perspectivas de resolução. Cada lado tem sua reivindicação, que, na maioria das vezes, é sensata. Isso quer dizer que o buraco é mais embaixo e os modelos negociais da era digital, antes celebrados, agora começam a apresentar rachaduras. Os streamings não estão felizes em gastar para manter um bom catálogo; a comunidade de atores e roteiristas também não está feliz em ser deixada de lado. Nessa história toda, poucos estão satisfeitos e, no final das contas, todos saem perdendo — incluindo a gente. No vai e vem, ficamos à mercê daquilo que nos é oferecido, tendo que lidar com o fato de que o que está disponível hoje não necessariamente estará disponível amanhã. E o pior: o que não está disponível no streaming, vai para onde? O cenário é desastroso se pensarmos em termos de preservação e circulação.
Se o filme não for Barbie e nem Oppenheimer, ou então se a série não for Euphoria ou The Last Of Us, é melhor começar a pensar no dia de amanhã, porque, nas mãos escorregadias que ditam esse vendaval, nada está garantido.
O mesmo se aplica à literatura, com o aumento do comércio digital de livros e o crescimento do mercado de e-books. A facilidade de acesso aos e-books e a conveniência das compras virtuais são indiscutíveis, mas isso também levanta questões sobre a preservação de clássicos literários e obras menos populares, que podem não ser digitalizadas ou disponibilizadas nas plataformas.
O que tudo isso significa para a circulação e os acervos culturais?
Hoje, temos uma ampla gama de opções, cada uma com seu próprio catálogo de filmes e séries, tornando difícil encontrar uma plataforma que contenha tudo o que desejamos assistir. Isso levanta a preocupação de que muitos filmes e programas, principalmente aqueles menos populares, possam ser deixados de lado e até mesmo esquecidos, resultando em uma lacuna na preservação da cultura cinematográfica. Para enfrentar esses desafios, é essencial pensar em estratégias que promovam a preservação e a circulação equitativa da cultura no mundo digital. Algumas hipóteses e possíveis soluções podem (e devem) ser consideradas.
E se as plataformas de streaming fossem colaborativas? A criação de um consórcio entre empresas de streaming para compartilhar seus acervos poderia permitir um acesso mais abrangente a filmes e séries. Isso poderia garantir que obras menos conhecidas não fossem tão negligenciadas e que a diversidade cultural fosse mais bem representada. E se tivéssemos bibliotecas digitais acessíveis? Governos e instituições culturais poderiam investir em bibliotecas digitais de acesso público, contendo uma ampla variedade de livros, revistas, filmes e música. Isso proporcionaria um espaço centralizado para a preservação da cultura e incentivaria a produção artística.
Não seria ótimo ter incentivo à preservação local? Estímulo à criação de arquivos locais que visem preservar a produção cultural de uma região específica, valorizando suas tradições e identidade. Esses acervos poderiam ser digitalizados e disponibilizados para consulta pública. E já pensou se existissem projetos de preservação colaborativa? Iniciativas conjuntas entre produtores de conteúdo, instituições culturais e o público em geral poderiam ser criadas para identificar e preservar obras culturalmente relevantes que corram o risco de serem esquecidas.
O que dizer, então, de um possível incentivo à educação cultural. Investir em programas educacionais que promovam a apreciação e o entendimento da cultura incentivaria as pessoas a buscar e valorizar uma diversidade maior de produções artísticas. E claro: leis de preservação cultural. Governos podem implementar políticas para garantir que produções culturais relevantes sejam preservadas e não fiquem perdidas ao longo do tempo.
A questão da circulação e preservação da cultura no mundo atual é complexa por ter que lidar com o âmago de um mecanismo que parece extremamente arraigado ao redor do mundo e abraçado pelas pessoas. Portanto, ela requer abordagens mais inovadoras e colaborativas. A era digital trouxe benefícios inegáveis para a disseminação da cultura, mas também trouxe desafios significativos em relação à preservação de produções menos populares. O trabalho conjunto entre governos, empresas, instituições culturais e o público em geral é fundamental para garantir que a rica diversidade cultural que estamos produzindo seja devidamente valorizada e preservada para as gerações futuras.
O momento atual é delicado. Para onde a coisa toda vai, não se sabe. Mas a sensação que paira periclitantemente no ar é a de que o futuro da produção cultural, assim como o seu consumo e sua preservação, depende muito dos próximos capítulos.
Estaremos atentos, como se assistíssemos à mais nova série do momento.