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Cabeça quente, de Luísa Matsushita (2023). Cortesia Galeria Luisa Strina.
Literatura

Uma valsa no farol

por Helena Cunha Di Ciero

Uma terça feira trivial, comum como todas as outras. Cidade cheia, farol congestionado por uma obra no asfalto. Há um buraco no chão, não há o que fazer, é preciso parar. Observo os malabaristas da faixa de pedestres que jogam garrafas pet coloridas para o céu azul, sorriem passando pelos carros. Sigo dirigindo com lentidão, olhando com raiva para o relógio. Os transeuntes apressados, bandeiras de futebol penduradas à venda entre os postes, que estampam rostos de políticos em quem não acredito. Bem disse Cazuza: Meu partido é um coração partido.

Irrito-me com o barulho, o tempo que custa a passar, as buzinas. Não encontro nenhuma música que caiba dentro de mim. Escuto um podcast sobre aquecimento global, nem a humanidade cabe no planeta mais.

Pela janela, vejo lentamente um carrinho de supermercado se aproximar da esquina, o homem que o conduz está sem camisa. Leva na cesta do seu carrinho um cobertor cinza, velho enrolado, pedaços de madeira, sacos plásticos de lixo preto. Para, olha os malabaristas também. Não me vê.

Olho seu carrinho de aço e penso que talvez, essa seja sua casa. Como uma tartaruga, o homem leva sua casa junto com ele. Sua pele é marcada por cicatrizes, seus olhos são tristes. Seu lugar à margem da sociedade está estampado na sua presença, cabelos, unhas e pés descalços. Por onde andei com tanta urgência que me esqueci o privilégio que é ter um teto? Me culpo.

O cobertor velho se mexe e de dentro dele sai um filhote de cachorro. Focinho brilhante, olhos espertos. O homem estende a mão, pega o cachorro e começa a niná-lo, dançando com ele na calçada. Rodopia, sorri. Ele e seu bichinho são uma coisa só. A leveza do amor por alguns segundos me faz esquecer as marcas da rua que antes eu tinha visto nele. Agora o que eu via eram outras marcas, as marcas de um laço de afeto eram reveladas na ternura com que ele acolhia o tal filhote.

Um dia alguém ninou esse homem, penso. Esse gesto foi aprendido e está em algum lugar dentro dele, sendo replicado ali, na rua, a céu aberto. Houve um tempo em que esse homem não foi só abandono, um tempo em que cantaram para ele. Um dia ele morou no ventre de alguém e não na rua. E em algum espaço isso está preservado naquela existência tão carente de recursos e está sendo passado para um outro ser vivo.

Contemplo o dueto pela janela. O homem e seu amor são bonitos de se ver. O filhote junto a seu peito, aconchegado. Ele passa seus dedos sujos na testa do cãozinho, olhos que se fecham agradecidos.

O farol abre. No dia seguinte, a caminho do trabalho, procuro pelo homem e seu cachorro, mas encontro apenas as garrafas pet coloridas dos malabaristas.

Por vezes, quando passo pelo cruzamento, lembro-me desses dois. O amor é mesmo um malabarismo. Uma valsa bonita de se contemplar, que fica dançando dentro da gente. Lembrar desse sentimento é o que humaniza nosso coração partido. E aconchega, como uma canção de ninar.

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