
Lia D. Castro: A cumplicidade refletida
Há um homem deitado no sofá, de costas para o espectador. Há outro homem deitado no sofá — ou seria o mesmo?— sobre o colo de uma mulher, cujas roupas são feitas de pintura e esparadrapos. A mesma cena íntima se repete algumas vezes, num interior geométrico feito de azuis e verdes. Ela lê um livro. Às vezes ele também lê. Há um abajur. Dentro de algumas pinturas, outras pinturas, como um caleidoscópio.

Por meio da repetição — de gestos, cenas, personagens e cores —, a artista Lia D Castro deixa evidente a dimensão reflexiva das pinturas e dos encontros que elas representam, tanto no sentido de espelhamento quanto no de contemplação e pensamento. Em uma delas, há a citação de bell hooks: “O amor é uma combinação de cuidado, compromisso, conhecimento, responsabilidade, respeito e confiança”, que acompanha as bordas da parede. Talvez todos os trabalhos de Castro estejam ancorados no amor. Não o amor burguês, que muitas vezes se confunde com exploração de gênero, mas aquele definido por hooks em Tudo sobre o amor, que é também “um espaço de despertar crítico e de dor” que é ativo, colaborativo e cúmplice — no processo da pintura ou da fotografia, nos encontros e nas trocas sociais, afetivas, financeiras, criativas e criadoras.


Além de artista, Castro é também intelectual, educadora e trabalhadora sexual, entre muitas outras coisas. Os retratos são de seus amantes e clientes, com os quais estabelece uma relação de intimidade e compromisso. Leem juntos. E ela nos convida a adentrar as cenas, como se fôssemos cúmplices daquele momento tranquilo, que em nada lembra o estigma social que recai sobre corpos e corpas dissidentes e sobre trabalhadores/as sexuais.



Talvez as obras sejam o inverso de uma sociedade estruturada por hierarquias sociais, raciais, territoriais e de gênero, ou representem o desejo de desmantelar esse “contrato” profundamente violento. É como se restituíssem a humanidade de sujeitos socialmente indesejáveis, repelidos, invisibilizados e mortos. Nas obras de Castro, vemos pessoas atravessadas por histórias e afetos, gente que gosta de descansar, de perder-se em pensamentos e devaneios, de estar perto de objetos bonitos, amigos, amores.
Dito de outra forma, as obras de Lia D Castro são um convite à criação de existências e histórias íntimas, à partilha de um lugar de afeto com as pessoas representadas, à empatia de também sentir vontade de desfrutar um momento de descanso, pausa e preguiça. Talvez elas funcionem como um espelho: nos implicando naquelas histórias como testemunhas de uma série de relações que a sociedade insiste em silenciar. Já não há inocência; as obras nos ensinaram sobre o amor.

— Os trechos acima fazem parte do texto originalmente escrito para a exposição da artista na Galeria Jaqueline Martins, entre fevereiro e março de 2023.