Turismo tropeiro no Vale Histórico
No fundo do vale, entre a Serra da Mantiqueira, Bocaina e Itatiaia, chegamos em um portal para um pedacinho de Brasil profundo, onde o tempo parece andar mais devagar, ditado pelo compasso sem pressa da cultura caipira.
Visitamos a região para garimpar um turismo de experiência autêntico, fora do óbvio, perfeito para escapadinhas de final de semana e feriados. Com divisas entre São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, esse pedacinho do Brasil fala a língua das culturas dos três estados.
Essas terras, que hoje atravessamos de carro, com pressa, sobre a via expressa da estrada asfaltada, foi um dia uma rota pujante de mulas, viajantes e comerciantes da época do Ciclo do Ouro, que escoava de Minas Gerais por esse mesmo vale em direção ao Rio de Janeiro. Foi cruzando essas primeiras trilhas de chão de terra que nosso país cresceu e se desenvolveu pelo Vale Histórico. O trajeto era utilizado tanto na época do Brasil colonial quanto no Brasil republicano. Os primeiros tropeiros comerciantes abasteciam com mantimentos as vilas e faziam o papel de “mídia” para que a informação pudesse circular na Corte Imperial, no Rio de Janeiro. Não coincidentemente, a distância entre cada uma das cidades é de aproximadamente 25 km, a distância média que uma mula conseguia percorrer em um dia de viagem. Cada entreposto acabava formando um rancho, um local de “hospedaria e restaurante”, e a partir deles foram se desenvolvendo essas vilas, hoje as pequenas cidades do Vale Histórico: Bananal, Arapeí, São José do Barreiro, Areias, Queluz, Silveiras, Lavrinhas e Cruzeiro.
Resolvemos, então, montar nas nossas mulas de aço e quatro rodas para fazer uma mídia atualizada, percorrendo parte dessa rota em uma releitura do que se chamaria hoje de “turismo tropeiro”.Nada melhor, para começar a contar esta história, do que uma boa cachaça no Rancho, centro de gastronomia e cultura caipira em São José do Barreiro, em frente à pracinha mais charmosa da cidade.
A experiência gastronômica oferecida no local remonta à comida típica dos tropeiros, que mistura pratos indígenas como o iça (farofa com formiga tanajura frita) com pastel de angu e fubá moído no moinho de pedra, além de diversos tipos de cachaça. O espaço conta ainda com um armazém com uma curadoria de produtos locais que transcende épocas, como carne de lata, café moído na hora, produtos a granel e cestos de taboa (levados nas mulas). Nos finais de semana e feriados, o local conta com a presença dos melhores violeiros da região.
“Tropeirando” mais adiante, chegamos à cidade de Areias, que abriga a nascente do Rio Paraíba e que conta com algumas atrações inesperadas, como o Hotel Sant’Anna, autointitulado o mais antigo em atividade ininterrupta no Brasil desde 1806. Nele, hospedaram-se D. Pedro II e a princesa Isabel, que fundou, na época, um conservatório de música frequentado pela alta sociedade da região, em uma era em que o Brasil econômico era o café, e o café era o Vale do Paraíba.
Vizinho do Sant’Anna, em um casarão antigo, conhecemos o antigo hotel e pensão Marques, por onde passaram Monteiro Lobato e Euclides da Cunha. Aliás, reza a lenda de que foi em Areias que Monteiro Lobato, na época trabalhando como promotor público na cidade, conheceu uma areiense chamada Anastácia, que trabalhou na sua casa e posteriormente o inspirou na criação da célebre personagem do Sítio do Picapau Amarelo, clássico da literatura brasileira.
Assim como tia Anastácia, a simpatia dos areienses é notória em todo lugar. Comece o dia com um café da manhã no Angelito, que une artesanato local com um cafézinho coado na hora e muito papo. A Casa de Cultura da cidade abre as portas da antiga cadeia e mostra orgulhosamente retalhos únicos da história: um exemplar de jornal original com a publicação da Lei Áurea e muitos trechos revolucionistas de 1932, uma vez que a revolução foi também sediada na cidade.
Entre uma cidade e outra do vale, as verdejantes fazendas guardam memórias quase intocadas da era de ouro do café. Algumas são tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), como a Fazenda Pau d’Alho, que é uma das poucas no Brasil com preservação integral e original de quase todas as instalações, sendo possível encontrar nela taipa de pilão e embasamento de pedra.
Outros espaços transformados em hospedagem são a Fazenda do Conde D’Eu, que pertenceu ao próprio marido da Princesa Isabel, e a histórica Fazenda São Francisco, com mais de 200 anos de existência. Esta recebe hóspedes nos seis quartos da casa-sede preservada, com direito a passeio a cavalo e visita a cachoeiras. A propósito, aos adeptos das aventuras equestres, existem outras fazendas que também abrem as porteiras, com hora agendada. Para quem quer experienciar um dia típico de produção de uma fazenda leiteira, desde a apresentação de cada vaca (por nome) até a produção na queijaria, é só falar com o Roberto, proprietário gente fina da Fazenda Barão da Bocaina.
Chegando em em Queluz, outro passeio super autêntico é a Fazenda Restauração. Se você quer fazer história junto, não deixe de visitar o Roberto. A restauração está rolando enquanto você lê essa matéria. Esse advogado com alma de artista é um baita narrador da história do café e profundo entusiasta de todas as raridades que encontrou e restaurou desde quando comprou a propriedade.
Encabeçando a revitalização do turismo rural local, a joia da coroa sem dúvida é a Fazenda Santa Vitória, fascinante propriedade de quatro mil hectares no coração do Vale. Essa fazenda leiteira foi crescendo aos poucos e expandindo seus sonhos neste verdadeiro “eixo rural”, que tem hoje múltiplos projetos em andamento. A queijaria, com rótulos premiados, é um deles.
Com um pouco mais de tempo, a hospedagem na fazenda é parada obrigatória de puro “deleite”. Atualmente, são duas as vilas de hospedagem: a Vila Prosperidade, sede principal, mais familiar, e a Vila da Cascata, que é um pouco mais afastada e imersiva na natureza. Tudo com um luxo sustentável e integrado ao ambiente local de um modo que dá gosto. De um centro para o outro, um pouco de trânsito de vacas garante uma experiência rural totalmente genuína.
Ainda faz parte da imersão um pouco de arte para o coração: o recém-inaugurado Respiro, encabeçado pela artista plástica Beatriz Monteiro, é um circuito de obras de arte e residência artística rural dentro da fazenda. Outra novidade são as trilhas recém-mapeadas dentro da reserva ambiental da fazenda, que começam no início de junho com programação guiada.
Novos planos de mais duas vilas de hospedagem e plantio de uvas para enoturismo estão para acontecer na região. Para não perder, seguimos de olho para as próximas novidades e em tudo que ainda florescerá no Vale Histórico.