A literatura indígena contemporânea no Brasil: a autoria individual de identidade coletiva
A Literatura Indígena Contemporânea no Brasil é um movimento estético-político protagonizado pela identidade indígena. A identidade indígena é originária, ancestral, e reside nos corpos de nossos antepassados, de nossos povos, os primeiros que caminharam sobre esta terra, muito antes de os brancos existirem aqui, como disse o cacique Raoni Metuktire.
“Até a Constituição Federal, em 1988, o país não aceitou a possibilidade de a identidade indígena ter direitos legais”
A conjuntura política, colonial e republicana, como mostrou Maria Santos e Guilherme Felippe, foi escravocrata e repressiva com os povos originários. Essa sistemática violência física impossibilitou a expressão indígena na literatura brasileira, mas não impediu que os escritores brasileiros usassem as referências de corpos e tradições originários a partir de seu espelho colonial. A literatura brasileira acompanhou o projeto de Estado-nação que visava dar cabo dos povos indígenas para apropriar-se de suas terras e direitos. Ambos os projetos, indianista e modernista, colaboraram para recrudescer políticas indigenistas que atacavam a humanidade, a identidade e o direito à cidadania indígena.
As políticas de extinção dos povos indígenas foram executadas em primeiro lugar em nome de Deus. Os missionários jesuítas, e outros, vieram com a missão simbólica de salvar a alma indígena, mas não só. Paradoxalmente, a retórica da salvação, diz Walter Mignolo, na obra A ideia de América Latina: a ferida colonial e a opção decolonial, vem acompanhada de apropriações de grandes extensões territoriais, genocídio e escravização. Não foi diferente aqui. Num segundo momento, houve o ataque à identidade indígena por meio da política conhecida como “integração”, ensejada sobretudo a partir de 1910, com a criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais, agência estatal que ficaria conhecida como SPI e seria substituída, em 1967, pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). As publicações brasileiras acompanharam o pano de fundo político sobre o qual versava o Estado.
Nesse sentido, é importante perceber que os povos indígenas têm direito à sua identidade originária, que é anterior à identidade do Estado-nação brasileiro. E se os sujeitos indígenas a endossam tão veementemente é tão somente porque ela só pôde ser afirmada há 35 anos. Importante lembrar também que o Brasil ainda é um Estado-nação, isto é, que defende uma identidade apenas, apesar dos 305 povos indígenas existentes e reconhecidos nacionalmente.
Vou explicar brevemente a lógica da identidade nacional. Quem nasce no Estado brasileiro, para existir como pessoa jurídica, como sujeito de direito, deve ser registrado pelos responsáveis. Esse primeiro documento, o registro de nascimento, dá uma certidão ao sujeito. Mais tarde, ele poderá retirar com ela o Registro Civil, o Cadastro da Pessoa Física (CPF), a Carteira de Trabalho, entre outros documentos, todos servindo a seus direitos, mas também deveres legais de acordo com a conjuntura jurídica estabelecida no país. Quem nasce no território brasileiro, em qualquer um dos 26 estados ou na capital federal, automaticamente possui a cidadania brasileira. A rigor, quem possui a cidadania também compartilha da identidade brasileira, pois está num território reconhecido como o Estado-nação Brasil, no qual território, nação e identidade se identificam como brasileiros. Porém, os povos indígenas já estavam nesse território antes mesmo de ele se chamar Brasil e de ter suas atuais configurações.
Até o advento da Constituição Federal, em 1988, o país não aceitou a possibilidade de a identidade indígena ter direitos legais, e por isso decretou a “integração”. Acusando os indígenas de primitividade e selvageria, ele se empenhou em extinguir a identidade nativa. Para existir aqui, era preciso dominar os costumes e as ferramentas do homem branco. Além disso, um documento da FUNAI decretou o fim dos (poucos) direitos indígenas, que passariam a viver apenas sob o guarda-chuva dos direitos brasileiros, como podemos ver no Estatuto do Índio, de 1973. Assim, os indígenas deixavam simbolicamente de existir para o Estado brasileiro. Isso significava que o indígena era visto como alguém que tinha evoluído de primitivo/selvagem para cidadão brasileiro/integrado, e agora podia, assim, trabalhar como qualquer outro cidadão.
É por isso que não vemos um movimento literário de escritores indígenas antes da década de 1990 — pois existir e ocupar outro ofício na sociedade dominante teria significado a derrocada da identidade indígena. Os intelectuais, políticos e ativistas indígenas, enquanto movimento político, já vinham enfrentando tais políticas de extinção desde a década de 1970. Essa resistência ficou conhecida como Movimento Indígena, que teve como êxito a assinatura dos direitos indígenas no artigo 231 e 232 da Constituição Federal de 1988.
A publicação editorial de obras indígenas, isto é, de autores indígenas, a partir da década de 1990, viria confirmar a urgência em protagonizar a identidade indígena, pois nela residia memórias e histórias ancestrais, evidenciando-se os conflitos territoriais ensejados pela sociedade dominante, o presente histórico dos povos ocultado sob falsas premissas, as estéticas presentes nas culturas e nas narrativas originárias e o paradigma indígena assentado na floresta, que ressaltaria a urgência da proteção ambiental em nível global.
Autoria individual, identidade de povo
Segundo a Bibliografia das publicações indígenas do Brasil, há 58 escritores indígenas listados, classificados em suas respectivas identidades de povos. Isso porque ser indígena é se reconhecer e ser reconhecido como pertencente a um povo originário, chamado de pré-colombiano, isto é, com existência anterior aos brancos nestas terras.
Quando os indígenas se veem em confronto direto com a sociedade dominante, resultado da configuração colonial do século 16 em diante, eles buscam ferramentas para lutar pela sua cultura e por seus territórios. Dessa maneira, vimos surgir, no cenário brasileiro editorial, Daniel Munduruku, Kaká Werá e Olívio Jekupé na década de 1990. E, na década subsequente, Eliane Potiguara, Tiago Hakiy, Yaguarê Yamã, Roni Wasiry Guará, Graça Graúna, entre outros. A publicação editorial, além do surgimento em segmentos culturais, desmistificaria todo o sistema da “integração” construído para negar a identidade indígena.
Com suas identidades de povos originários, os sujeitos indígenas inauguraram outro movimento, na cultura, que Daniel Munduruku chamou de “indígenas em movimento”, isto é, a atuação individual em ofícios negados a eles pelo Estado brasileiro, que são de ordem de direitos humanos básicos: com a nova legislação, podiam ser escritores, cantores, professores, artistas visuais, pintores, contadores de histórias, ou seja, atuar na sociedade dominante sem que isso lhes tirasse a identidade indígena legalmente. Essa atuação informou a sociedade da existência indígena a partir de outro olhar que não o da integração, mas do pertencimento e da celebração da identidade de muitos povos que sempre existiram aqui.
A atuação dos sujeitos indígenas no ofício de escritor não pode ser confundida como uma representação política. É preciso entender que toda sociedade indígena possui seus próprios mecanismos de representação política e que um indígena escritor que atua na sociedade dominante, escrevendo e publicando livros, embora tenha uma identidade coletiva, faça parte do povo cujo nome carrega o nome. A identidade em seu existir no mundo e em seus livros não substitui as lideranças políticas do cacique (em alguns casos, o nome é intitulado tuxaua), do vice-cacique e do secretário que atuam na defesa do território e das comunidades. Acredito que o termo mais apropriado seja representatividade, ao pensarmos como a presença de um indígena no mercado literário — no caso do escritor Daniel Munduruku, através da promoção de concursos literários que incentivam a literatura indígena no país — repercute na autoestima dos indígenas, sobretudo os jovens que passaram a crescer com uma referência, algo que a geração da década de 1990, como é o meu caso, não viveu.
As poéticas indígenas são ancestrais e cantam a terra, a pluralidade de seres humanos e não humanos que habitam a floresta, os cosmos e os universos. Mas não só: cantam, contam ou escrevem sobre a soberania violada, denunciando a história do Império colonial que nos subtraiu o direito de determinarmos nosso próprio destino. Assim, é ancestral e histórica concomitantemente.
Por tudo isso, reafirmamos a reivindicação pela nossa soberania e nossa autodeterminação. Que seja reconhecido o nosso direito originário de determinarmos nosso próprio destino, que a nossa escrita e as nossas expressões sejam reconhecidas como humanas, em todas as complexidades que isso envolve, e que o Brasil possa ponderar sobre a sua história sem parcialidade predominante.