diante de homem com h maiúsculo, criação
opto por escrever este texto com frases iniciadas por letras minúsculas, como gesto de insubordinação ao poder dominante e sua insistência na homogeneização, colonização, normatização, sincronização, automatização. para homem com h maiúsculo, criemos.
no contrafluxo da criação, contudo, o corretor automático do computador corrige este texto e transforma cada letra minúscula inicial digitada em maiúscula. automaticamente. sem o meu consentimento. eu sigo a voltar nas letras iniciais contidas após cada ponto final, insistentemente transformadas em maiúsculas, para mantê-las da forma que o leitor as vê: minúsculas.
pensemos a partir do e-mail: com um enter é possível perder o sotaque ou qualquer espontaneidade promovida. a forma “correta” também é oferecida automaticamente. sem tu “mal” conjugado, obrigade com pronome neutro ou intenção estilística nas construções de frase.
mas são apenas sugestões do programa, claro. para facilitar. o Waze também não nos obriga a virar para a direita ou a esquerda. ele fala, a gente obedece.
além disso, certamente é possível desabilitar o corretor automático, que não tem este nome por acaso. surge automaticamente, se instala automaticamente, corrige automaticamente e pouquíssimos sabem como alterá-lo. quem esgota o programa?, perguntaria Vilém Flusser. nos anos 80, o filósofo já colocava a questão da mediação do aparelho/da imagem técnica entre o homem e a sociedade ocidentalizada como um elemento fundamental na construção do mundo em que vivemos. assim, preocupado com a fragmentação de nossa experiência e imaginação, Vilém desenvolveu o termo “aparelho”, definido como “brinquedo que simula algum tipo de pensamento”, e o relacionou com sua capacidade de nos tornar seus “funcionários”, isto é, “pessoa(s) que (…) age(m) em função dele”. ou seja, na perspectiva flusseriana, o famigerado corretor automático funcionaria como um aparelho que insiste na imposição de um tipo de pensamento que, por sua vez, é baseado numa norma, num modelo, numa “verdade” programada. e, ao agirmos de maneira automática, em função dele, nos tornamos seus funcionários, permanecendo presos dentro da lógica imposta. como alternativa para essa complexa relação, o filósofo propõe que brinquemos.
entendo que o exemplo do corretor automático possa soar exagerado à primeira vista, se o mantivermos isolado. basta olhar ao redor, no entanto, e facilmente conseguiremos desdobrá-lo para praticamente todas a esferas de nossa vida cotidiana: mapas, trajetos, horários de ônibus, aplicativos de transporte particular, entrega de comida, supermercado, previsão do tempo, banco, cadastros, agendamentos, pix, matrículas, ingressos, tradução, pesquisas, filmes, jogos, aulas virtuais, músicas, séries, notícias, fofocas, receitas, dietas, letras e cifras musicais, contagem de calorias, cálculo dos batimentos cardíacos, número de passos dados, horários para tomar água, avaliação do ciclo menstrual, avanço da gestação em formato de fruta. não apenas o corretor, mas uma infinidade de outras tecnologias digitais faz parte de nossas rotinas.
acontece que, por trás de cada tecnologia, há uma lógica. Yuk Hui, importante filósofo da contemporaneidade, explica que ela se caracteriza por carregar “formas particulares de conhecimentos e práticas que se impõem ao usuário, os quais, por sua vez, se veem obrigados a aceitá-las”. percebem? de forma geral, usamos a tecnologia do jeito que ela se apresenta — com suas letras maiúsculas e correções automáticas. pouco brincamos com o programa.
Shoshana Zuboff, criadora do termo “capitalismo de vigilância”, oferece uma perspectiva semelhante, pensando a partir de empresas do universo digital como Google, Amazon e Apple: “tecnologias são constituídas por funcionalidades específicas, mas o desenvolvimento e a expressão dessas funcionalidades são moldados pelas lógicas institucionais nas quais as tecnologias são projetadas, implementadas e usadas”. Shoshana com letra maiúscula porque é nome próprio, não porque está no início da frase.
o que ambos os autores propõem é que não há neutralidade nos aparatos que compõem a vida. não devemos encará-los a partir de um viés unicamente instrumental, como se fossem meros objetos com funções. ao utilizá-los, o fazemos a partir da lógica, do conhecimento, da intenção de quem os criou. não se trata de um lugar de valor, mas sim de sua característica. tendo isso em vista, me parece interessante problematizarmos: e quando a grande maioria das tecnologias que utilizamos são produzidas por um único modelo?
esse processo integra o desenvolvimento da humanidade. para a construção do pensamento moderno não foi diferente. ao ampliarmos a perspectiva da tecnologia à dimensão de modos de habitar a terra, chegaremos a algumas estruturas que hoje podem nos parecer naturais, mas que, na verdade, foram construídas. ideias como ciência, mente, arte, lucro, natureza, excepcionalidade do homem branco foram constituídas junto da formação da modernidade e disseminadas graças às tecnologias (entre outras, náuticas e bélicas), possibilitando, segundo Hui, “a elevação de uma visão de mundo regional ao status de metafísica supostamente global”. supostamente. pois, se há um modelo de poder dominante, ele, no entanto, não é universal. povos originários, cuja existência se dá a partir de uma cosmopercepção distinta da ocidentalizada, são afirmação disso, bem como tantos outros núcleos de resistência espalhados pelo planeta. ainda assim, não restam dúvidas de que um modelo único é imposto: capitalista antropocêntrico racista patriarcal, padrão balizador de um jeito “certo” de existir. e este é o ponto que gostaria de relacionar com as tantas letras minúsculas deste texto.
porque a homogeneização das formas é caminho para o controle. e quando não temos tempo nem energia para pensar, a dominação é facilitada. Suely Rolnik, filósofa e psicanalista, alerta que, em sua versão atual, “é da própria vida que o capital se apropria”, defendendo justamente que nossa força vital e de cooperação acabam sendo “canalizada(s) pelo regime para que construa um mundo segundo seus designios”.
assim, se insisto nas letras minúsculas deste texto, é na convicção da potência da criação enquanto resistência. não como um muro que barra um movimento, ainda que esse tipo de postura também seja fundamental. penso na resistência enquanto proposição. invenção para desdobramentos que não sabemos, mas que se exercitam para sair de um modelo fixado. Edson de Sousa, psicanalista que estuda a questão da utopia, observa que “criar é abrir descontinuidades, interrupções no fluxo do mesmo”.
decidida a construir um texto sem espaços para homem com h maiúsculo, me propus às letras minúsculas. a metáfora seria um caminho para pensar maneiras de destituição de parâmetros habituais do regime hegemônico. outros futuros. transformações. mas, para minha contraditória surpresa, essa singela provocação formal também se deparou com desafios tecnológicos. claro. a insistência do corretor automático até estas últimas linhas permaneceram, lembrando e relembrando sua tentativa de padronizar meu texto. padronizar a vida.
diante disso, me alio à ideia de “não ceder à vontade de conservação das formas de existência” — defendida por Rolnik —, insisto mais que o corretor automático e deixo aqui outro breve exercício de criação.
criar
inventar imaginar fabular pensar fantasiar especular devanear brincar ampliar desdobrar expandir esgarçar desanestesiar desobstruir descondicionar desnaturalizar contracolonizar bolar vaguear elucubrar confluir experimentar cozinhar germinar arriscar mover alongar esticar deslocar esquivar desviar contornar estimular alimentar reaprender desaprender divertir-se importar-se não se importar relaxar resistir partilhar trocar escutar bagunçar desarrumar testar acertar errar diversificar multiplicar misturar polifurcar questionar romper interromper descontinuar esburacar sentir molhar-se ser tocado tocar libertar transcender envolver vibrar pulsar ter coragem suspender o céu improvisar pacientar relacionar sonhar transformar
não saber
agir
viver