Family, série de Masahisa Fukase. Cortesia de Image Masahisa Fukase Archives e MACK.
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Literatura e ética: direitos autorais no mundo da Inteligência Artificial

Acordo entre HarperCollins e empresa de tecnologia levanta questões sobre o futuro da literatura e da expressão artística.

A HarperCollins, uma das maiores casas editoriais do mundo, propôs recentemente que parte de seu catálogo seja utilizado para treinar modelos de inteligência artificial generativa e, assim, virou o epicentro de um debate intenso sobre o futuro dos direitos autorais na era das IAs. Os títulos selecionados para esse propósito serão de não-ficção, mas somente com a autorização dos autores envolvidos. A oferta, que inclui um pagamento de aproximadamente 15 mil reais por título selecionado, dividiu opiniões ao redor do mundo.

Em uma declaração ao jornal britânico The Guardian, a HarperCollins declarou ter firmado um acordo com uma “grande empresa de tecnologia”, cujo nome foi mantido em sigilo (os rumores dizem que é a Microsoft), para o uso limitado desses livros, com a promessa de “melhorar a qualidade e o desempenho dos modelos” das IAs. Apesar de considerar a proposta atrativa, a editora enfatizou o respeito às diferentes opiniões dos autores, que podem optar por aderir ao acordo ou recusá-lo.

Entretanto, a transparência da editora foi questionada quando o autor Daniel Kibblesmith revelou publicamente um e-mail que recebera sobre a inclusão de seu livro infantil, e de ficção, Santa’s Husband nesse programa. A oferta, dividida igualmente entre ele e a ilustradora do livro, Ashley Perryman Quach, foi classificada pelo escritor como “afrontosamente baixa”. Além disso, o contrato estipulava cláusulas rígidas, incluindo confidencialidade sobre a identidade da empresa de tecnologia e a impossibilidade de negociação individual.

A questão ética da questão grita alto para todo mundo ouvir: as obras utilizadas como base para treinar IA geram valor substancial, mas a distribuição desse valor é assimétrica. O ideal, claro, seria um diálogo mais amplo, que incluísse todas as partes. Sem isso, as negociações bilaterais entre editoras e empresas de tecnologia podem levar a uma erosão dos direitos dos criadores. Ainda mais preocupante é o precedente que tais acordos podem estabelecer. Se um autor recusar a oferta de uma editora para usar seu livro no treinamento de IA, o que de fato impediria que a mesma obra fosse usada sem consentimento por modelos que recolhem dados da internet de maneira indiscriminada? Nos escombros não-fiscalizados do mundo digital, ninguém é de ninguém.

Para muitos escritores, a iniciativa da HarperCollins é vista como um tiro que tem tudo para sair pela culatra. Por um lado, há quem defenda que acordos como esse trazem alguma ordem ao caos atual, em que as big techs (não só as “big”) frequentemente utilizam obras protegidas por direitos autorais sem permissão, gerando ações judiciais de grande repercussão, como a movida pelo Authors Guild contra a OpenAI. Licenciar livros poderia permitir que autores mantenham algum controle sobre como suas obras são utilizadas, ao mesmo tempo em que são compensados financeiramente.

Por outro lado, esses contratos acabam sendo muito mais vantajosos para as editoras do que para os criadores. Enquanto a HarperCollins propõe uma divisão de 50% dos lucros, muitos argumentam que o valor gerado pelo uso de textos em IA deveria pertencer majoritariamente aos autores. Mesmo com cláusulas que limitam o uso dos textos, como o impedimento de reproduzir mais de 200 palavras consecutivas ou 5% de um livro, há um temor crescente de que essas iniciativas contribuam para uma desvalorização do trabalho criativo humano. 

A ideia de que modelos de IA possam um dia “fazer todos nós obsoletos”, como descreveu Kibblesmith, reflete um medo existencial compartilhado por muitos na indústria.

Mais do que uma questão técnica ou legal, o uso de obras literárias para treinar IA levanta questões sobre o significado do ato de criar. Com algoritmos ganhando cada vez mais força e poder, qual é o lugar da arte criada por mãos humanas? A voz de um autor, com todas as suas peculiaridades, pode ser replicada por máquinas sem perder a essência do que é verdadeiramente humano? Se treinada para isso, talvez sim.

Ou seja, para além das implicações práticas, a questão também abre espaço para reflexões filosóficas. Se é verdade que a literatura é uma representação do íntimo do humano com todos os medos, esperanças e contradições que caracterizam a nossa espécie, até que ponto é ético conceder às máquinas o direito de absorver e reproduzir esse legado? A escrita, que é ou deveria ser uma expressão-mor da nossa liberdade, transforma-se aqui em uma engrenagem que alimenta sistemas cuja finalidade é frequentemente comercial.

Na mesma medida em que os modelos de IA se tornam mais sofisticados, eles também se tornam mais inquietantes. Não é apenas o conteúdo de livros que está sendo usado, é a própria essência do pensamento humano, destilada em bits e algoritmos. Em que ponto essas tecnologias deixam de ser meras ferramentas e começam a competir com seus criadores? A ideia de que os textos criados por humanos sempre serão mais complexos por ora é verdade, mas o amanhã é um campo incerto.

A tensão entre inovação e ética está no cerne deste debate. A HarperCollins, com sua longa história de experimentação em modelos de negócios, posiciona-se como uma intermediária que apresenta oportunidades aos autores, mas também carrega a responsabilidade de proteger o valor intrínseco das obras que publica. Enquanto isso, escritores e leitores são convocados à reflexão. A batalha não é apenas por contratos mais justos ou por maiores compensações financeiras, mas pela preservação daquilo que torna a arte única: sua capacidade de transcender o tempo e conectar pessoas. Se pensarmos no que esses acordos podem fazer para gerações futuras de criadores, talvez essas novas gerações simplesmente não existam, desmotivadas a exercerem uma atividade subvalorizada.

Talvez o maior desafio para a comunidade literária nos próximos anos seja resistir às pressões do lucro a qualquer custo e encontrar formas de coexistir com a IA sem perder sua própria identidade. A literatura, a exemplo de qualquer arte, não é apenas uma questão de palavras em uma página. É, sobretudo, um reflexo da alma humana.

O debate é só o início de uma transformação mais ampla no modo como criamos e consumimos informação, sendo o caso HarperCollins nada mais do que um reflexo de nosso momento. Ele nos desafia a entender os aspectos técnicos e legais, mas, sobretudo, a nos debruçar sobre aspectos morais e espirituais. Como sociedade, estamos prontos para redefinir os limites entre humano e máquina?

Vivemos em uma era em que a literatura, um dia sagrada e intocável, agora é negociada em bytes. E é assustador constatar que isso vale para tantas outras coisas. 

O que resta agora é saber como escreveremos, se é que serão escritos por nós, os próximos capítulos dessa narrativa compartilhada.