Serge Peyrot, formado em fisioterapia clássica pela Universidade de Marselha, estudou com Françoise Mézières, a fisioterapeuta francesa pioneira do que hoje é mais conhecido como Reeducação Postural Global, o RPG. Em 1985, após perceber que os sentimentos e as emoções eram expressão autêntica do conteúdo inconsciente das retrações e tensões musculares, e que não poderiam ser excluídos do trabalho corporal global, fundou a Terapia Morfoanalítica. Um método terapêutico que acredita que corpo e mente são duas caras da mesma moeda. Ambos constituem a mesma memória corporal-emocional vivida desde que o bebê está no útero materno até o momento presente. A Terapia Morfoanalítica parte da concepção do ser humano como uma unidade indissociável corpo/psique, e sua técnica valoriza o papel do corpo na psicoterapia, especialmente nas manifestações psicossomáticas. “O sintoma é tratado no plano físico ou psíquico sobre o qual se manifesta, criando condições para que o paciente reconheça e incorpore sua dimensão inconsciente”, diz Serge.
Você começou sua formação como fisioterapeuta, na Universidade de Aix-Marseille. Nesse período, depara-se com algo que lhe faz duvidar de que a fisioterapia seja um marco terapêutico completo: um livro. Que livro era esse? O que significou para você?
Ainda estava estudando fisioterapia em Marselha quando li o livro de Thérèse Bertherat, O corpo tem suas razões. É um livro que teve um grande sucesso naqueles anos (entre 1975 e 1985) porque colocava em foco o importante papel da vida emocional nos transtornos posturais, musculares, articulares, e em muitas doenças autoimunes. Sempre pensei que era possível tratar uma pessoa inteira, e não somente um sintoma, que o corpo é um reflexo da alma, que a consciência das sensações permite transformar o corpo objeto em um corpo que vibra, ressoa e tem história. Esse livro falava disso, e me levou a pensar que algum dia trabalharia nessa linha.
Para obter seu título, o senhor começa sua carreira profissional como fisioterapeuta. No entanto, não se sente completamente satisfeito com esse método terapêutico, ao menos na visão mais clássica. Por quê?
Trabalhei por pouco tempo com a fisioterapia tradicional. Rapidamente me dei conta de que os tratamentos clássicos tinham efeitos superficiais e pouco duradouros. Como as causas profundas não eram detectadas nem tratadas, acabavam por continuar causando os mesmos efeitos. Os sintomas voltavam de uma maneira crônica e o paciente não conseguia sair desse círculo vicioso. Então intuí que existia outra forma de ajudar o paciente a libertar-se desses sintomas, de uma maneira completa, mais global, mais eficaz.
Você conheceu, em 1979, Françoise Mézières, que deu um passo além da fisioterapia clássica. O que ela agregou ao seu trabalho?
Conheci Françoise Mézières um pouco antes de terminar meus estudos. Sentia vontade de conhecer diretamente a grande professora que havia inspirado Bertherat. Foi uma pioneira na fisioterapia postural, a primeira que sistematizou um método de reeducação global que aplicava de maneira exata o conceito de “cadeias musculares”. Segundo esse conceito, todos os músculos do corpo são interdependentes, estão organizados em cadeias, de tal forma que qualquer lesão ou desequilíbrio em uma parte do corpo pode se transmitir e se manifestar em outra região. Ela propunha uma série de posturas de estiramento horizontal e vertical do corpo. Era uma nova forma de entender a anatomia e a correlação de postura, e isso me encantou.
A partir de 1979, o senhor começa a aplicar em suas consultas a fisioterapia tal como Françoise Mézières. Inicia-se, então, um período de seis anos de intenso trabalho clínico, e o senhor chega à conclusão de que o método que está utilizando é incompleto. O que o levou a essa conclusão?
De uma visão biomecânica, o método de Françoise Mézières parecia perfeito. No entanto, não levava em conta os aspectos psicoemocionais da história da pessoa e a maneira como se manifestam no corpo. Meus pacientes não demoraram a me ensinar que mudar de postura é um processo complexo que não se limita a reorganizar ossos e músculos. Durante as sessões, algumas pessoas viviam reações emocionais, outros relatavam sensações intensas, algumas lembravam momentos esquecidos de suas infâncias; todas sentiam uma necessidade de compartilhar, com palavras, essas diversas expressões para organizá-las e transformá-las em pensamentos.
O senhor faz o uso da psicanálise para completar seu método de trabalho e sua maior influencia nesse campo vem do psicanalista e psiquiatra suíço Jean Sarkissoff. O que o senhor incorporou da psicanálise em seu método?
No começo, quando uma expressão emocional se manifestava em uma sessão, eu fazia o que me saía naturalmente: acompanhava e acolhia a emoção, escutava o que a pessoa dizia das suas sensações, imagens e memórias. Progressivamente, fui organizando um quadro terapêutico, pensando em uma maneira de acolher a dimensão sensorial e a emoção que emergia do trabalho corporal global. Paralelamente, experimentei vários tipos de terapias psicocorporais, porque era evidente que eu mesmo necessitava me conhecer de maneira profunda, física e psicologicamente, para poder ajudar os meus pacientes. Enfim, conheci o grande psicanalista suíço J. Sarkissoff, que me permitiu chegar pessoal e profissionalmente a uma compreensão do trabalho do inconsciente e a ser capaz de detectar como ele se manifesta pelo meio corporal ou verbalmente. Sobretudo, ajudou-me a entender e integrar os aspectos transferenciais da terapia corporal global.
Em 1985, o senhor considerou que seu método era diferente de qualquer outro e decidiu criar a Terapia Morfoanalítica, com a qual continua trabalhando até hoje. Quais são suas principais características?
Ao longo dos anos, junto dos meus colaboradores, transformamos totalmente a forma de trabalhar as posturas globais, com microestiramentos, toques suaves, precisos, condução verbal colaborativa, incorporando um trabalho respiratório diafragmático e integrando a consciência sensorial em todas as fases de cada sessão. Completamos nosso quadro terapêutico com outras técnicas também: massagem sensitiva, massagem profunda no tecido conjuntivo, massagens específicas (abdome, mãos, pés, rosto), mobilidades específicas (braços, pernas, cabeça), trabalhos de consciência de postura, e integramos a expressão corporal, emocional e sensorial como representações naturais de uma mesma realidade: a unidade postural. A postura é um equilíbrio complexo que se vive e se manifesta no presente, mas que tem suas raízes em sua história psicoafetiva infantil. Assim, construímos um método muito bem estruturado, uma terapia psicocorporal global que permite aprofundar-se nesses três campos (corporal, emocional e sensorial) e, sobretudo, articulá-los entre si, de tal maneira que a comunicação corpo-mente-emoção-sensação seja restaurada. Um método adequado tanto para pessoas que sofrem patologias físicas quanto para quem padece de problemas psicológicos. Trabalhamos o corpo com os mesmos princípios de um psicanalista: não forçamos, não empurramos, não julgamos, não decidimos pelo paciente o que tem de ser sentido. Respeitamos o ritmo de cada pessoa. Cada corpo carrega a história da pessoa, e o equilíbrio postural se articula com o equilíbrio psicoafetivo, porque os dois atuam sempre juntos, mesmo que não tenhamos consciência disso. Ajudamos nossos pacientes a tomar consciência dos laços que unem corpo-emoção-sensação para desativar os mecanismos patológicos responsáveis por sua aparição no sistema. Quando os músculos retraídos soltam suas tensões e recuperam sua elasticidade, os conteúdos emocionais são liberados e se expressam física, emocional e sensorialmente; ou com os três campos de uma só vez. É importante que o terapeuta aplique o método que permita acolher e integrar a diversidade de todas essas manifestações, porque graças a elas temos acesso à riqueza e à complexidade da personalidade de cada indivíduo.
Como funciona o processo de reequilíbrio do indivíduo? Em outras palavras, o que acontece com o paciente quando seu corpo e/ou sua mente libera memórias, emoções?
Muitas tensões corporais crônicas estão relacionadas com lembranças ou emoções reprimidas no nosso inconsciente. Quando o trabalho corporal libera essas memórias e emoções, a grande quantidade de energia que servia para mantê-las presas é liberada, e pode manifestar-se de várias maneiras. Por exemplo: a pessoa vive uma emoção, intensa ou leviana. O terapeuta a acolhe, pois sabe que essa energia é a que mantinha a hipertensão no corpo. Quando termina a onda emocional, o terapeuta ajuda o paciente a expressar com palavras o que foi vivido. A expressão verbal simboliza e transforma em pensamento algo que havia ficado internamente como material “bruto”, não trabalhado, ou confuso. Às vezes, a grande quantidade de energia liberada se manifesta com sensações intensas em algumas regiões do corpo, que o terapeuta, através do diálogo, ajuda o paciente a expressar verbalmente, pois sabe que as sensações são uma linguagem que necessita ser decodificada para ser compreendida. Quando as emoções e as sensações são elaboradas verbalmente e transformadas em pensamentos, são assimiladas e voltam a fazer parte da história psicoafetiva da pessoa, enquanto o corpo e a postura recuperam seu equilíbrio e tonalidade elástica. O que reequilibra, tanto física como psiquicamente, é a integração e a interação do corpo com o sensorial e o emocional.
Quais são os problemas mais comuns que os pacientes trazem em suas consultas?
Podemos classificar a necessidade dos pacientes em duas categorias principais. Os que sofrem de problemas físicos, agudos ou crônicos, tendo certa consciência de que esses sintomas são a expressão corporal de uma série de situações afetivas e emocionais não resolvidas. Esse tipo de paciente precisa de uma terapia que possa acolhê-lo e tratar a dor física, mas também entender a dimensão psicológica das causas inconscientes desses sintomas. A segunda categoria é formada por pessoas que sofrem de transtornos emocionais diversos como: anorexia, depressão, insônia, bulimia, angústia, e que sentem intuitivamente a necessidade de receber ajuda verbal, mas também através do corpo. A maior parte dos nossos pacientes já havia tentado outros tratamentos, com poucos resultados, antes de decidir por uma solução que integrasse corpo-emoção-sensação-palavra-relação, como faz a Terapia Morfoanalítica.