
O ser inteiro na alegria abaeté
Satisfação não é algo que imediatamente associamos ao mundo que se constrói a partir da prosa poética de Valter Hugo Mãe no romance de curioso nome As doenças do Brasil. Essa sensação de habitar um local ou momento em que estamos aparentemente protegidos do assédio de necessidades e impulsos; um tempo-local ilha, onde as contas cobradas pelo passado foram devidamente pagas e o futuro deixou de cutucar com sua demanda de movimento. Satisfação é tempo-local de solvência, curiosa como tema, pois essa solvência não tende a instar à escrita.
Impossível não pensar com Conceição Evaristo, no prefácio a As doenças do Brasil, que se trata de um livro de medicina, recendendo às obras catalogais que exploradores produziam a partir de observações deste pedaço lusófono da porção tropical do Novo Mundo. Impossível também não pensar que a doença é condição das mais contrárias à satisfação. Longe de tratado sanitarista, a obra é uma narrativa poética transcorrida na realidade do povo abaeté, denominação tupi para “homem verdadeiro”. A poesia da prosa de Mãe busca não descrever ou representar, mas conceber (possivelmente vibrando com o sobrenome artístico do autor) um mundo indígena nas palavras da língua portuguesa. Talvez daí um desconforto fundante do livro — algo que está na sua própria gênese enquanto escrita e não tem como escapar à sua leitura.
Honra, o herói do romance, é guerreiro sempre ferido, pois concebido do estupro de sua mãe abaeté por um invasor branco. Entre os seus, ele é o “feio branco”, que carrega no corpo a acusação de uma invasão que virá a inaugurar a profusão de doenças que o título nos faz lembrar. Os sábios da aldeia descobrem nele aquele que, podendo adentrar a realidade do inimigo branco, pode atacá-la para defender o mundo abaeté. Em um ritual, o guerreiro faz surgir em sua boca — “toca do espírito” — a língua do inimigo, e se toma de asco por sua feiura. É uma língua que ofende a realidade das coisas e dos bichos que rodeiam, que dá a eles nomes que são mais prisões que moradias.
Mas é nessa língua que habitamos, é nessa língua que lemos a poesia de Hugo Mãe, o prefácio de Conceição Evaristo, e nessa língua vão escritos os textos que compõem esta edição. Mais do que tudo, é nessa língua que a experiência abaeté é entalhada na própria obra. Não evadimos o idioma que habitamos, assim como não evadimos a pele que nos cobre, tal como Honra, lutando por seu povo, não deixa de ser o “feio branco”, o guerreiro cuja pele denuncia o outro que acerca e ameaça a existência daquela ordem, daquele mundo.
O autor nos informa, em texto que serve de posfácio, que a urgência do livro o atacou quando ele ouviu de um cacique anacé, de Fortaleza, as palavras: “vá e diga ao seu povo branco, que um dia chegou aqui para nos matar, que seguimos de braços abertos para o receber como amigos. Ensine ao seu povo que somos amigos”. Daí talvez a exortação que se repete no livro de que o inimigo seja trazido para ser educado a “ser inteiro na alegria abaeté”.
É belo o convite feito pelo cacique ao escritor. O livro se configura, então, como extensão desse convite a nós, leitoras e leitores. E essa “alegria abaeté” a que as personagens buscam trazer seus inimigos para “serem inteiros”, seria ela uma forma de satisfação? “No princípio, havia apenas a meditação do silêncio. Na presença do silêncio tudo era vazio e nada necessitava”, conta-nos a cosmogonia que se desfralda logo no início da narrativa. Desse silêncio sem necessidades se fez o ruído, se fez a imaginação, a imaginação da Divindade que fez tudo ser mais que verdadeiro. Surge o movimento. O ruído e a palavra ocorrem para que as coisas possam habitar, para que os humanos possam habitar, para que possam ser abaeté, o verdadeiríssimo humano.
E o mundo abaeté — suas ilhas — se estende por três mares. A partir do quarto mar, é o mundo de outros — tanto o branco cuja ameaça se aproxima quanto o negro que, fugido de uma fazenda onde era escravizado, tratado primeiramente como grotesco animal, é acolhido e passa a habitar, abaeté, o nome Meio da Noite. Para além dos quatro mares, é o desconhecido. A poética de Mãe, então, nos apresenta todo um mundo novo, com seus objetos e suas relações próprias vivendo em nomes que são próprios, de uma língua na qual o livro não está escrito, mas que precisa ser, por quem o lê, imaginada. A imaginação, como vimos antes, surge naquilo que é necessidade, naquilo que não existe para nós, mas que sabemos existir para outro e que nos falta. A língua que não é dita no livro, mas que é falada por seus personagens através do português de Mãe, o mundo que desvela-se nessa língua, o modo de vida — tudo isso é o que nos falta, a nós além do quarto mar; para nós, o povo dos três mares é o desconhecido, é um mundo que já habitou o espaço onde vivemos. É isso que nos falta, é aí que o livro é escrito, nesse espaço da imaginação.
Receio que minhas divagações não tenham ajudado a tornar o nome do livro em nada menos estranho. A primeira dúvida é óbvia: que doenças do Brasil são essas a que alude o título? Francamente, a concretude das doenças que foram trazidas pelos portugueses e que contribuíram para dizimar grandes contingentes das populações indígenas que aqui viviam não me parece uma resposta satisfatória, pois pouco temos referências a quaisquer doenças desse tipo na narrativa que transborda um mundo que não chegou a ser conhecido com o nome de Brasil. Eu me arrisco a entender como “doenças do Brasil” a falta a que aludi — a tristeza, a melancolia de nos sabermos herdeiros de passados que nos escapam, de mundos que não vivemos mas que, sem que o percebamos de todo, nos vivem, de palavras-moradias de paisagens que nos cercam, mas que não conhecemos.
A segunda dúvida que surge, inevitável: por que “Brasil”, esse nome posterior à realidade que o livro anima, atribuído a um espaço que só foi delimitado também posteriormente? Talvez o respondam o fato de o início do livro trazer trechos de Pero Vaz de Caminha, Frei Vicente Salvador, Padre António Vieira, Davi Kopenawa e Ailton Krenak — a linguagem que fundou o Brasil em seu início cronológico e a linguagem que o reinaugura modernamente com saberes ancestrais. Talvez o responda também um trecho que o autor deixou de fora da obra, mas que acrescenta em um posfácio: “por toda parte se chama Brasil. Do baixinho de uma árvore, mesmo raiz, até o pescoço mais alto, depois da copa, depois até do pássaro, mesmo que voando só na claridade, é chamado Brasil (…) Como se não fosse necessário nenhum outro nome. Entoaríamos Brasil e isso seria infinito de significados. O Brasil, coisa tão ávida”.
O Brasil, fundado na língua portuguesa, pela presença portuguesa, reimaginado por Valter Hugo Mãe e tantos outros ainda na língua portuguesa, não se furta a resgatar os mundos e as línguas que deram e continuam a dar morada a tantos de seus espaços, os mundos e as línguas que o fazem plural. O português, parece crer Hugo Mãe, é lábil o suficiente para convidar mundos e cosmogonias, poéticas outras. Uma satisfação que não extingue as necessidades que acendem a imaginação, mas que as faz fervilhar para que sejam algo mais que doenças.