
A vitória do showcialismo e a derrota dos olhos cansados
Seu olho está cansado, leitor. Eu não preciso conhecê-lo para saber que seu olho está cansado, sua cabeça está cansada. Mas peço sete minutos de atenção. Com olhos cansados, vou escrever sobre olhos cansados a olhos cansados. Olhos assim não mantêm a atenção. Por isso, vou escrever parágrafos de, no máximo, 220 palavras. Tente se concentrar: vou falar a olhos dispersos sobre uma dispersão socialmente instituída. Contarei uma história que vai da promessa de olhos e corpos satisfeitos à insatisfação geral.
Vitórias iniciais da imagem
Essa história se mescla à de um escritor em tempos de olhos desatentos. Em 2025, o escritor está um século atrasado. Em 1925, Joseph Roth, uma das linhas mais bem pagas do jornalismo europeu, escreveu mais de cem artigos para o Frankfurter Zeitung. Nesse diário, Roth apresentava a estagnação da sociedade albanesa, o avanço do tribalismo em resorts do Mar Báltico, a antropologia de um hotel francês, a dor em sanatório austríaco. Roth mostrava realidades a leitores que compunham cenas e ideias com os “olhos” da mente. O escritor via e lembrava. O escritor pensava e transliterava. O editor imprimia. O leitor visitava com a imaginação. Escritor e leitor se reuniam no papel. O encontro tinha início, tinha fim. A leitura era ritual de um tempo definido, que diferia essencialmente de outros momentos da vida e, ainda assim, podia penetrar na vida subjetiva do leitor alterado pela palavra. O jornal ia para o lixo, mas a realidade escrita podia ficar.
Mas mudanças se anunciavam. Na biografia Endless Flight, Keiron Pim fala no folhetim de Roth, que captura “o fluxo intenso e a estranheza desorientadora da vida na cidade moderna”, em metrópoles como Berlim, Viena, Paris, onde a atenção do leitor já era disputada por jornais competindo com jornais e com rádios, cinemas, letreiros em néon, e sons cacofônicos (buzinas, gramofones, vendedores ambulantes). O leitor do jornal era um cansado em potencial — pelo trabalho, pelas contas, pelas aflições pessoais, pelas palpitações urbanas, pelas dores do mundo. Nessa sociedade, Walter Benjamin (em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica) falou no cinema como arte ajustada a massas esgotadas pela rotina industrial, cansadas para ler, mas suscetíveis a choques audiovisuais. Benjamin falava de uma história da estória moderna, em que a narrativa declina e dá lugar à informação, depois à sensação.
Não tinha smartphone, mas já tinha TV a cabo, internet: em 2006, sala da PUCRS, o professor Assis Brasil nos recomendava, na oficina de criação literária, o uso do ponto final. Escrevam frases curtas. Usem verbos visuais. Comecem frases com sujeitos concretos. O escritor digita e pontua orações verbais. O escritor ajuda o leitor, em vez de “o leitor é ajudado pelo escritor”. As técnicas de escrita pressupunham a gênese de um leitor distraído. Nos termos de Benjamin, a questão era como escrever histórias a olhos condicionados ao frenesi videográfico. Como narrar a olhos que já estavam se cansando?
Em 1985, Neil Postman já tratara do estatuto do texto em Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business. O ensaio lembra os sete debates, nos anos 1850, entre Abraham Lincoln e Stephen A. Douglas, com discursos de uma a três horas, assembleia lotada de cidadãos que ouviam argumentos cadenciados com elegância, lógica, evidência. Douglas, depois de aplausos eufóricos a seu discurso, disse ao público: “Eu desejo me dirigir ao seu juízo, seu entendimento, não a suas paixões e seus entusiasmos.” Postman falou na mente tipográfica, que recebia a realidade por textos com subtexto e contexto, mesmo na forma oral. Eram tempos da letra impressa e fenômenos como Common Sense, de Thomas Paine, autodidata, filho de artesão, cujo livro vendeu 400.000 cópias numa população de três milhões — comparável ao Super Bowl hoje, sugere Postman.
O telégrafo prenunciava algo novo: mensagem de todos lugares a todos lugares, com conteúdo “queimável”. Logo viriam as revistas especializadas, meio transicional em que a palavra escrita perdia lugar para fotos, cores, gráficos e, na análise de J. Habermas (em Mudança estrutural da esfera pública), endereçava-se a um leitor de “notícias de gratificação imediata (acidentes, desastres, esportes, recreação)” A TV, depois, foi abalo sísmico na estrutura dos meios de percepção. No jornal das 20h, não havia texto com contexto, mas fatos atrás de fatos. Como qualquer fato, os televisivos não eram puros, mas saturados de estímulos da linguagem cinética-comercial. Para Postman, criavam cultura de “irrelevância, incoerência e impotência”, voltada a “aplausos, não reflexões”.
Meio como realidade
“O formato da TV não me deixa aprofundar”, um jornalista me respondeu quando eu disse que sua síntese da “banalidade do mal”, de Hannah Arendt, não tinha sido justa com o juízo da autora, publicado em cinco reportagens escritas. Como incluir nuances de 275 de páginas num comentário televisionado de poucos minutos? Para Postman, a TV absorvia todos os discursos midiáticos (rádio, cinema, jornal), mas excluía, pela própria forma, o não performático, “incerto”, “aborrecido” — como alguém no “ato de pensar”. Em 1983, a rede ABC, após exibir The Day After, reuniu intelectuais para debater o perigo nuclear. Sem jingles ou comerciais, o programa reuniu pensadores díspares, como Henry Kissinger, Robert McNamara, Carl Sagan e Elie Wiesel. Cada um tinha cinco minutos para falar — de preferência, sem evasões, contradições, vacilações inerentes ao pensar mas destoantes da linguagem televisiva, teatral e assertiva. Não funcionou: no tempo predefinido para a “discussão”, os intelectuais pareciam “finalistas num concurso de beleza”.
Nenhum meio é neutro, sobretudo quando meio vira mensagem que vira mercadoria. A TV capturava a atenção do espectador com shows em parte adaptados ao ciclo natural do dia (de manhã, Ana Maria Braga e culinária; depois da escola, Malhação e adolescência), em parte já transgredindo o tempo do dia com técnicas de excitabilidade e monopólio da atenção (um “domingão” todo na frente da TV; uma “maratona” de séries para descansar, ou cansar, no sábado). No telediário, o olho via eleições, agora guerra, agora o tempo, agora comerciais, agora inflação, agora futebol. O ponto de contato entre o consumidor de TV em casa e mísseis no Afeganistão (imagens editadas de mísseis no Afeganistão) era um “olho que nunca descansa”.
Eu disse era, no passado, porque a internet não só absorveu a TV (e o antes absorvido pela TV), mas também, atualizando Postman, sugou formas de ser que ocorriam fora dos “meios” — trabalho, estudo, amizade, amor —, virando não apenas epistemologia (modo de compreender uma realidade), mas ontologia (uma realidade).
Derrota da sociabilidade
Em O século anti-social, publicado pela Atlantic, Derek Thompson fala que, junto à TV, o carro marcou a transição de uma vida mais pública a uma mais privatizada. No lugar de clubes, templos, praças, cafés, entram os espaços de corpos sozinhos. Até as casas mudam: menos salas e mais quartos onde solitários veem telas que, diferente do cinema, produzem sensações num “público” de um só. Na gênese desse espectador autocentrado, a TV a cabo, liberada da palavra escrita, acentuara o fracionamento da “esfera pública” em nichos recreacionais: o tio assistia à pesca, a mãe à ginástica, o irmão a desenhos. Ninguém assistia ao mesmo canal, à mesma versão editada da realidade. Era a pré-história do que C. Sunstein (em #Republic: Divided Democracy in the Age of Social Media) chamaria de Daily Me das redes sociais. Nesse “jornal de mim”, a realidade é filtrada, fatiada, servida ao gosto do consumidor — ou desgosto de um consumidor consumido pelas demandas do consumo. A cultura industrializada propunha “facilitação psicológica” de enredos digeríveis por corpos cansados. Mas o capitalismo não é notório por se impor limites. Se ócio vira negócio, melhor negócio do que entreter às vezes é entreter sempre, reter com feed, banquete sem fim, açúcares e corantes digitais a empanturrar olhos cansados e cérebros insaciáveis.
Vitória do showcialismo?
Entre os séculos 19 e 20, teóricos revolucionários falaram numa “vitória do socialismo”, quando a humanidade se governaria com mais segurança e menos conflitos, mais liberdade e menos dominação, mais igualdade e menos privilégios. Não aconteceu. Poderíamos falar hoje numa vitória do showcialismo, sociabilidade de simulacros, conexão disponível a pessoas, grupos, nações desconectadas entre si?
Em 1935, Benjamin evitara otimismo acrítico e pessimismo reacionário. O filme era democrático: dava ao indivíduo moderno o “direito de se reproduzir”. Com a câmera, qualquer um pode ver e ser visto. O filme tinha ainda potencial científico; o espectador saía de casa, rua, região, viajava com o travelling da câmera e descobria, com zoom out e foco, o “inconsciente”. E o filme tinha potencial socialista. Histórias podiam ser reproduzidas, legendadas e exportadas, fomentando consciência transnacional.
Mas Benjamin via o “negativo” do progresso técnico. Alertou, por exemplo, contra o uso do cinema pelo fascismo, que dava voz às massas sem mudar suas condições materiais. Hoje, no showcialismo, estabilidade e autogoverno parecem distantes, derrotados pela vitória da ansiedade, desgoverno, exaustão. Atualizando Marx: padre, intelectual, advogado devem virar influencers — senão, não “existem”. A existência dá lugar ao jogo de imagens sobre si mesma. O usuário parece liberado de sua rua, país, mas, com olhos presos à tela, fecha-se em imagens protecionistas, protegidas contra a diferença. Traz à consciência o que antes era “inconsciente” — a onça nadando na piscina no Pantanal, o Silvio Santos IA, a criança ferida pela guerra —, mas só os descobre como representações sem presença física. A realidade parece aumentada, mas se encolhe organicamente entre retina e sinapse mental.
Sob o verniz da liberdade, cada Pravda pessoal censura o que insatisfaz, dá dislike: o feio, o envelhecido, o moribundo. Pulsões contraditórias são ostracizadas do território imaterial dominado por reproduções de materialidade feliz, dançante, veloz, estimulante, produtiva, gostosa, saborosa, nesse desfile de corpos sem textura, sem cheiro. Exilamo-nos numa Sibéria da Imaginação, na mesma forma estética imposta e posta por olhos cansados que não descansam. Até a mudança climática se adaptou à monotonia de vídeos curtos, assistidos em casas ainda intactas com wi-fi ainda estável.
É hora de refazer a pergunta revolucionária. Como mudar o mundo se nem estamos no mundo? Mudar o mundo seria voltar ao mundo? Que tipo de consciência pode formar quem trabalha, brinca, ama com o olho, descansa e cansa com o olho? Falar hoje em consciência humana soa anacrônico (“cringe”). Consciências showciais viraram colagens de sensações e imagens e palavras em memória exausta demais para lembrar. Há quem sinta essa revolução cognitivo-existencial como irresistível. As coisas “são como são”. São mesmo? Para quem quiser pensar o presente: eu não disponho de doutrina. Meu programa contrarrevolucionário é também fragmentário. Procede de imagens e pontos assistemáticos, como: (1) a cafeteria Pão Quente, em Leça da Palmeira, onde rascunhei este texto e onde vejo senhoras e senhores falarem sobre política, vida, vida alheia, ignorando TV e telefones, que talvez nem tenham; (2) a apropriação democrática das fábricas de fatos e “fatos alternativos”; (3) um retiro nos Andes ou em Piracanga; (4) ida ao cinema (quem diria, Benjamin?); (5) um match com alguém na parada de ônibus; (6) debate, por mais de cinco minutos, sobre os detentores dos meios de desatenção e seu acúmulo de poder político; (7) minutos em silêncio; e, principalmente, (8) um descanso ao olho.