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Pilão de vó flurua, de Ana Paula Sirino
#53MitosCulturaEditorial

O mito repete o sempre no agora

por Júlia de Carvalho Hansen
Júlia de Carvalho Hansen é escritora e editora convidada da edição Amarello Mitos.

Os mitos estão em toda parte. São parte da espécie humana. Dos livros de escola aos conceitos de psicanálise, no que os filmes de Hollywood se apropriam das épicas clássicas para que os marcianos sejam vencidos, passando pelas crenças das religiões e pelas descrenças da ciência, do Egito Antigo às propagandas de automóveis, numa história para uma criança dormir, nos horóscopos, nos terreiros, nos fãs de um rockstar, nas propagandas políticas… As estruturas míticas operam nos imaginários humanos com força e permanência. 

Talvez a gente ainda lide com a ideia de que o mito só acontece no passado, como uma essência primordial de uma história antiga, ou de uma doutrina que produz condicionamentos (lá no fundo) ilusórios a serem desmascarados com a agressividade da certeza, a faca da razão e o furo da verdade. No entanto, a sensibilidade mítica transcorre por outras estruturas — e, nelas, enquanto alguns pressupostos se diluem, as narrativas ampliam conhecimentos. O mito pode, sim, ser entendido como uma fórmula arcaica, “apenas” uma história contada em volta de uma fogueira. Mas o mito também pode ser entendido como o próprio fogo. 

É passado, mas o mito também é presente. Aprendemos com Roland Barthes que ele pode existir até mesmo na propaganda de uma caixa de sabão. A eficácia saponácea de lavar mais branco é, no fundo, uma metáfora: o que, no alvo clarão de um pano, fala de uma mitológica ideia de higiene ou conforto? O mito é uma força operativa cotidianamente. Por um lado, pode funcionar como um recurso de sabedoria ancestral em tempos sem sentido, mas também é, em si, uma forma articulada de pensamento, a abertura para o que é preciso (re)conhecer, uma maneira legítima de nomear o tempo.  

Os mitos atravessam séculos e geografias, adaptam-se às línguas, aos suportes das mídias, são orais, imagéticos, escritos, tatuados em símbolos, se embrenham e recriam nas cosmologias de cada tempo. Continuam vivos nas narrativas de família, em sonhos noturnos, nas histórias que contamos às crianças, nas fábulas modernas do cinema e até mesmo nas fórmulas matemáticas que tentam descrever o universo. Estão presentes nas metáforas e manipulações políticas, nas idealizações amorosas e nas promessas de tecnologia, na inteligência artificial, nos pressupostos do progresso. 

Nossa ideia, neste número da Amarello, foi desdobrar o mito como uma potência sempre atual. De que maneiras o mito se reinventa no tempo e, assim, nos aterra no presente? Como essa forma narrativa tão antiga pode permanecer atuante e, ao mesmo tempo, ganhar novas roupagens? Para isso, convidamos especialistas de diferentes áreas a abordar o mito por diversos prismas: da filosofia clássica às tradições afro-brasileiras, passando pela astrologia, pelos conhecimentos indígenas, pela psicanálise e, claro, pela literatura. A seu modo, cada um deles mostra que o mito não é só um resquício do passado que continua pulsando nos imaginários, mas uma chave para compreensão.  

* 

No pensamento (sobretudo europeu) do século XX, circulou certa ideia de que o mito poderia ter sido “superado” pela História ou pela Ciência (quase sempre com “H” e “C” maiúsculos). Além de que as ideias de superação são em si datadas, são também colonialistas e violentas porque produzem o aniquilamento de uma forma de ver o mundo sobre outra. É contra essa ideia violenta que tentamos produzir os debates e as argumentações sobre mito nos textos desta edição. Contra uma visão única e, portanto, totalitária, a pluralidade mítica — o que, no Brasil, é não só um argumento como uma prática.  

Em tempos de crise, certamente o mito oferece não só respostas, mas caminhos de indagação e, sobretudo, de imaginação. Se não formos capazes de imaginar, o que nos restaria? É certo que as narrativas não organizam o mundo como uma ciência exata, imaginar também é extrapolar a possibilidade de haver uma única resposta e de que a crua e dura realidade seja a única possibilidade de corte e costura de viver. Qualquer mito é, por princípio, passível de interpretação. E nisto, regulamenta uma abertura de imaginário, trazendo pistas pro impossível e pro inimaginável. O mito conta o que não sabíamos nomear e, no entanto, já era sabido, de tão necessário. 

O mito repete o sempre no agora. É primeiro e antes de tudo uma história que já aconteceu e que carrega tanta força narrativa e simbólica que se cristalizou no chão das coisas vivas ou, então, que virou uma gota de orvalho umidificando as folhas de noite. As folhas do sonho. Entrar em contato com um mito talvez seja essa espécie de retorno à casa que a vida onírica nos traz. Se, por um lado, tem algo de espelhamento, também traz o seu assombro: o que já estava dito é vivo, pode ter aura, ser chamado de arquétipo, se embrenhar nas geleiras dos esquimós, acontecer entre as árvores de uma floresta. Ser esquecido. Ele dá corpo ao que a razão não consegue abarcar por inteiro e se infiltra em cada narrativa que ousamos criar para explicar o mundo. O mito também é um poder. 

Podemos ter o mito da origem como uma força de significação. Procuramos naquele acontecimento primordial quem somos a partir de uma primeira faísca ou de um grande trauma, sabemos que os territórios onde crescemos também trazem caracteres das nossas personalidades. Talvez ao procurar na origem, na escola, nos pais, no país, no primeiro namorado, a gente esteja mesmo procurando um mito pra chamar de meu. Isso porque, quando recontamos um mito, entendemos a história a partir de outra perspectiva, mais transversal. Será a cultura um apanhado de mitos que se refizeram tanto que já integramos as suas narrativas ao ponto de esquecermos com que palavras elas foram feitas? Como efeito tácito, essas características que achamos que são recortes de modos de ser talvez sejam mitos que nos esquecemos de contar. 

Como um homem do seu tempo e da sua cultura, o antropólogo Claude Lévi-Strauss, no livro Mito e significado, opõe o pensamento científico ao pensamento mítico, concluindo que o pensamento científico tem o poder de “alcançar o domínio sobre a Natureza”, coisa que (ele indaga) o pensamento mítico não seria capaz. E penso eu que talvez não seja capaz justamente porque relacionar-se com a natureza não deve se tratar de uma questão de domínio, mas de convívio. Os mitos são também uma forma de conviver com o mundo na qual o próprio mundo responde ao que não conhecemos. Contra o binarismo de certo ou errado, real ou falso e a apropriação do desconhecido, o mito traz um acesso multidimensional ao tempo e horizontal no espaço. É atemporal. 

No entanto, o mesmo Lévi-Strauss também conta que, enquanto escrevia as suas “Mitologias”, ouviu falar de uma determinada tribo, que era capaz de ver a luz de Vênus durante o dia — o que ele considerou imediatamente impossível. Aquilo o fez procurar astrônomos, dos mais renomados, que confirmaram que não era possível ver a emissão da luz de Vênus durante o dia. O antropólogo conta que, passado algum tempo lendo tratados de navegação europeus, descobriu relatos de navegantes europeus que contavam ter não só avistado Vênus de dia como utilizado isso para se guiarem pelo mar. Disto Lévi-Strauss conclui que ver Vênus era possível (afinal, os “seus” haviam visto!) e que os povos sem escrita têm seus conhecimentos a respeito da natureza de uma forma que “nós” (eles, os europeus letrados) não teríamos. É interessante a perspectiva de que diferentes culturas produzem capacidades de inteligências díspares, ao ponto de afetarem a acuidade visual. Mas, no fundo, o pensamento mítico fala de ver Vênus à luz do dia ser possível tanto como realidade real quanto como imaginação da realidade. Não importa. É a luz de Vênus, e ela está sempre ao nosso alcance. 

Lévi-Strauss, bem sabemos, não era brasileiro. No Brasil, os mitos se proliferam. Se alguém disser que viu Vênus de dia, é certo que teremos centenas, quiçá milhares, de visionários de Vênus. Se há uma coisa que não falta no brasileiro é imaginação mítica. Acreditamos em cada coisa. Aposto que se você perguntar para um brasileiro se ele tem espiritualidade, pode vir a ouvir de tudo… Eu mesma já ouvi “acredito em Jesus Cristo” ou “Exu é pai, laroyê!”, como também “a minha tia Cidinha quando incorpora o Juquinha traz verdades através de uma boneca” ou “acredito em energias”. Existem, claro, os céticos (e sobretudo os que se dizem). No entanto, seja como herança clássica — onde ainda ecoam Cronos, Dionísio ou Afrodite —, seja nas cosmologias afro-brasileiras e indígenas, os mitos aqui se multiplicam e se encontram, compondo um imaginário plural. Os mitos no Brasil são realmente inesgotáveis. 

E isso é belíssimo e aterrorizador. Por exemplo, no Brasil, crescemos com o mito da abundância. Por trás da destruição ambiental do tal do progresso que explora os minérios abrindo vãos na terra, que devasta as florestas pra criar gado, há um mito originário desde a carta de Pero Vaz de Caminha que diz que, nesta terra, “em se plantando tudo dá”. Caetano Veloso, além de ter citado Caminha, na Tropicália, também costumava citar uma frase do português Agostinho da Silva: “o destino do Brasil é tão grande que não há abismo em que ele caiba”. E, por trás disso, está o pressuposto de que no Brasil tudo é inesgotável. O que, em termos míticos, talvez seja verdade.  

Tento imaginar, por exemplo, o poder das narrativas que conseguiram atravessar o Atlântico nas pessoas que foram raptadas e escravizadas e traficadas em navios tumbeiros e que chegaram no Brasil. Imagino que essas histórias, ao serem contadas e recontadas, mantinham vivas não só a memória de suas famílias e línguas de origem, mas também a dignidade e a força de cada comunidade africana raptada — iorubás, jejes, bantus, entre tantas outras — que nunca se resumiram à condição imposta pela escravidão. Ao serem compartilhadas, essas histórias recriavam mundos, preservavam cantos, ritmos, orikis e modos de viver. Elas atravessaram séculos, resistiram ao sequestro e à morte, ao apagamento, e seguem hoje como raízes de resistência, beleza e criação na cultura brasileira. 

Se, neste país, “mito” também é sinônimo de resistência, infelizmente, a palavra também foi politicamente apropriada para se referir a um genocida. A história recente mostra como certas forças políticas se apropriaram do termo “mito” para justificar projetos autoritários, violentos, excludentes. É assim mesmo, o mito tem muitas faces. Se abre mundos, também pode fechá-los. Não há inocência no seu uso. A apropriação de símbolos míticos por regimes totalitários não é nova — basta lembrar a suástica nazista como uma inversão de um símbolo budista. Se o mito pode ser manipulação, pode também ser memória coletiva e criação de futuros, o que o torna, portanto, sempre um campo de disputa. Reconhecer essa ambivalência é reconhecer a sua força.  

Nesta Amarello, pensamos em trazer o mito sob perspectivas diversas presentes no contemporâneo, seja em revisões históricas politicamente obrigatórias, seja na proposta de dar voz a práticas de conhecimento que circulam nos imaginários brasileiros. Dos muitos textos da edição que trabalham neste sentido, destaco dois especificamente: os depoimentos de Glicéria Tupinambá e o texto de Reginaldo Prandi.  

Ao narrar a jornada de Glicéria, a matéria revela como a reconstrução do manto Tupinambá na qual Glicéria trabalha com afinco é uma cosmotécnica: um gesto que une saberes, sonhos ancestrais para reabrir caminhos que o colonialismo interrompeu. Mais do que um apelo por repatriação, a história do manto Tupinambá é também um chamado à revisão crítica daquilo que os museus europeus guardam como “objetos” e que, na verdade, são entidades vivas. 

No texto de Reginaldo Prandi, um dos maiores estudiosos das religiões afro-brasileiras, o mito aparece em sua dimensão mais profunda: como narrativa primordial que funda sentidos, organiza valores e transmite saberes entre gerações. Prandi sintetiza o que é um mito, lembrando que ele não é uma mentira, mas linguagem simbólica capaz de dar corpo ao indizível e ao sagrado, de costurar passado e presente em um mesmo tecido de imaginação e verdade. Em sua leitura, os mitos dos orixás, assim como os mitos cristãos, gregos ou hindus, não são apenas histórias, mas modos de viver, mapas éticos e existenciais que sustentam coletividades inteiras. Sua contribuição à revista ilumina com lucidez como o mito resiste ao tempo, à ciência e às tentativas de apagamento, permanecendo sempre como lugar de memória, de resistência cultural e de orientação vital. É nessa perspectiva que este número da Amarello se abre.  

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